quarta-feira, 21 de outubro de 2009

James, o Sapo

James tinha um rosto estranhamente redondo, raspava a cabeça e tinha uma boca alongada horizontalmente que mais parecia um sapo. James era um Sapo. Ganhou o apelido quando levou para sala de aula uma foto. A foto em questão mostrava James soprando três velas na sua festa de três anos. No bolo um desenho de um sapo estava voltado para a câmera e, para um desavisado, pareceria que o desenho havia sido feito com base em uma foto de James. Rodrigo viu a foto e logo gritou: “Olha um sapo soprando outro”. James tinha cinco anos e desde então se tornou o Sapo.

O apelido parecia não corresponder somente a sua imagem, mas também a personalidade. Desde os quatro anos passava seu tempo livre em um riacho ao Norte da cidade, com calças dobradas até o joelho e os pés descalços pisando em pedras alisadas pelo correr das águas. Também gostava de sentar no toco de uma árvore grande e morta que havia sido cortada no ano em que ele nasceu e feita de banco para seu pai fumar cachimbo no fim da tarde. Desde a morte de seu pai o Sapo havia tomado aquele “banco” para ele.

Era comum Rodrigo passar na sexta feira e tirar James do banco para ir jogar bola na cancha de areia do bairro. Apesar de ter dado o apelido que seguiria James por toda sua vida, os dois acabaram se tornando amigos.

Era uma amizade muito peculiar. O gênio de ambos não poderia ser mais diferente. Enquanto o Sapo tentava caçar seus amigos girinos no fundo do riacho, Rodrigo se entretinha em grupos grandes, jogando bola, correndo de pega e outras brincadeiras de crianças comuns na época. Os dois sentavam lado a lado na sala de aula, mas no resto da tarde pouco se viam. Exceto nas sextas em que James tinha permissão de jogar bola

Digo ter permissão pois, desde a morte de seu pai, Carla, sua mãe, tinha um zelo especial e um pouco agressivo para com James. E contraditório. Deixava o rapaz sair sozinho por toda a cidade mas, quando era para sair com outras crianças, só nas sextas feiras. Acreditava que ter um contato muito intenso com outras pessoa poderia ser prejudicial, pois tiraria seu filho aos pouco de perto dela, assim como seu marido foi a deixando aos poucos por uma cama de hospital. Tal zelo foi determinante no caráter de James.

***

De pé, em frente a sua casa, James olha para onde passou toda sua infância e princípio de adolescência. Ao seu pé esta uma mala, a mesma que ele levou cinco anos antes para o internato onde foi estudar. Sua mãe deve estar lá dentro, preparando o almoço com Alice, a empregada de sempre, enquanto ambas esperam sua chegada. No toco de árvore não há ninguém sentado. Nesses cinco anos, pensa James, ninguém deve ter sentado ali. Permanecera vazio a sua espera.

Foi muito difícil para o Sapo deixar sua mãe, sua casa, a Alice e todo aquele lugar para partir para o desconhecido. Tinha dezesseis anos quando entrou no ônibus que o levaria à capital. Foi sozinho. O plano era ter ido com Rodrigo, mas esse, de tanto passar o tempo com seus outros amigos, acabou reprovando um ano e ficou para trás. O Sapo nunca o havia perdoado por isso, por ter de entrar naquele ônibus sozinho, naquela tarde nublada, rumo à capital. Agora ninguém sabe de Rodrigo. Foi para Porto Alegre um ano depois de James e por lá ficou até deixar de mandar notícias para a família, deixando todos em um estado de espera desiludida que dizem ter matado sua mãe. James não o perdoava por isso também.

Enquanto espera para entrar em casa, Sapo lembra sua infância, mais particularmente sua primeira briga. Estava no seu toco, em uma sexta feira, quando Rodrigo o levou para jogar bola. Sapo tem até hoje a certeza de que não havia cometido aquele pênalti, mas só Rodrigo acreditou. Ouviu-se alguém gritar que iria ver que cor de sangue tem um sapo. Acabou que era vermelho mesmo. Rodrigo interveio à favor de James e mostrou que seu sangue era vermelho também, assim como o dos outros colegas que entraram na briga.

Foi a última partida de futebol de James. Sua mãe o proibiu de sair na rua por meses e de jogar bola para sempre. A amizade com Rodrigo cresceu nesses meses de internamento. Passou a freqüentar a casa do amigo quase diariamente e ficou íntimo de Dona Carla que o tratava com dureza, mas carinho. Dona Carla nunca entendeu o sumiço de Rodrigo, mas aparentemente o perdoou.

***

Encontrou sua mãe na cozinha como imaginava. A reação dela foi de uma surpresa tamanha que não parecia que ela esperava a chegada do filho a vinte dias, quando esse desistiu da faculdade e foi para casa. Se abraçaram forte e ensaiaram uma pequena dança que era costume dos dois desde sempre. Mas somente Alice chorou. Chorou profundamente e quando abraçou James, a quem chamava de moleque, acabou molhando a camisa do outro com suas lágrimas.

Todos da pequena cidade sabiam que James iria largar a faculdade eventualmente. Sabiam que ele não era feito para aquilo. Somente sua mãe mantinha a ilusão de ter um filho capaz de ser inteligente como o pai. Acreditava tanto que fez uma força descomunal para viver todo aquele tempo longe do filho. Foi Alice que convenceu Carla de que o melhor era ela dar um pouco de liberdade para o filho. Quando este mandou a carta dizendo que havia largado os estudos e dentro de vinte dias estaria em casa ela se sentiu traída. Teve raiva, chorou, teve discussões com alguns do bairro, mas a idéia de ter o filho de volta em casa a confortou. Secou as lágrimas, fez as pazes com os que havia brigado e finalmente admitiu que seu filho era incapaz de se formar.

Já o Sapo sempre soube. Chegou a uma faculdade devido à influência de um dos diretores, que havia estudado e dividido quarto com seu pai naquela mesma faculdade. Levou uma semana para entender que tinha que trocar de sala de acordo com a aula e só foi descobrir que podia emprestar livros na biblioteca outras duas depois. Tudo teria sido mais fácil se Rodrigo estivesse ali. Mesmo tendo repetido de ano, Rodrigo era inteligente, indisciplinado mas inteligente. Seria um companheiro perfeito para a faculdade. James também nunca o havia perdoado por não estar lá.

A gota d água para James largar a faculdade foi quando teve de fazer as seis matérias obrigatórias daquele semestre e mais três que estavam atrasadas. Com isso não teria o prazer de nadar nos fins de tarde nem de ir ao cinema nos fins de semana.

Havia uma piscina no terreno da faculdade. Apesar de ser um sapo, James não sabia nadar muito bem e se contentava em passar horas na parte rasa. Gostava de ver como a mão ficava enrugada e um pouco arroxeada depois das horas de imersão. Nas sextas feiras, como estava proibido de jogar futebol, ia ao cinema e lá ficava até às seis quando começava a escurecer. Tinha medo de andar nas ruas da capital no escuro.

No seu último dia no dormitório da faculdade não teve de fazer muitas despedidas. De amigos só tinha um professor que tinha o péssimo hábito de não ver a realidade, de achar que todos eram capazes de tudo, só lhes faltava dedicação, e o faxineiro do andar do seu quarto. O faxineiro tinha problemas com a bebida e sempre ficava no quarto de James bebericando seu conhaque direto da garrafa. James nunca soube que aquilo era proibido em todo o dormitório. Talvez nunca tenha percebido que aquilo era álcool.

Feitas as despedidas foi até o terminal de ônibus de Florianóplois e partiu para casa.

***

Completava um mês que James havia voltado a sua casa. Nas duas primeiras semanas quase não saiu. Passava todo o dia ouvindo as histórias da mãe e da Alice. As duas sempre foram amigas, mas na ausência de James se tornaram carne e osso. Logo que ele foi à capital, o marido de Alice morreu de infarto. Como não tinha filhos, foi morar na casa de Dona Carla, no quarto que antes era de James. Os laços de trabalho acabaram e as duas viveram como se ambas fossem donas da casa.

Quando começou a sair pela cidade, matava saudades dos passeios de antes. Voltou a freqüentar o riacho, mas por menos tempo que a piscina, pois fazia um frio brutal e não demorava para as mãos ficarem arroxeadas. Sentava-se também no toco de árvore e lá ficava por um bom tempo. Certa vez passou uma pessoa de outras bandas e, devido ao olhar compenetrado do Sapo, teve impressão de que estava diante da pessoa mais inteligente da cidade, que passava o tempo perdido em pensamentos construtivos.

Nas noites os três sentavam diante do forno à lenha e lá ficavam até o sono chegar. Como as mulheres trabalhavam duro na limpeza da casa, esse não demorava. James permanecia diante do forno. Antes de dormir ia até a porta do quarto da mãe e ao seu antigo para ver se todos respiravam. Depois ia para sala que havia se tornado seu novo quarto.

***

Rodrigo voltou mudado. Tinha a barba crescida, os cabelos também. Era alto, estava com a pele muito branca, mas parecia saudável. Uma vizinha de Rodrigo contou a Dona Carla que ouve momentos de ódio e de pura comoção quando este entrou em casa. Foi recepcionado com uma frieza odiosa que durou pouco, logo seu pai o abraçou e chorou de tal forma que levou as lágrimas todos que assistiam. Rodrigo ficou sabendo da morte da mãe. Sua reação pareceu de indiferença mas logo caiu em pranto, aos pés do pai.

Não contou muito do que havia feito naqueles últimos anos. O que contou parecia mentira ou fantasia. Passara um bom tempo em Curitiba, descarregando e carregando caminhões, fazendo outros bicos e vivendo com uma moça e com o filho dela. Quando perguntado do porque de seu sumiço calou-se e seus olhos ficaram perdidos no espaço por um longo momento.

A vida na cidade naquela época resplandecia. O calor estava voltando, as pessoas se reuniam nas ruas para conversar, formavam rodas de chimarrão. James não saía de casa a um bom tempo. Desde a chegada de Rodrigo, este tentava visitar James. Sempre sem sucesso. Dona Carla e Alice tentavam convencer o filho a perdoá-lo mas era em vão. O Sapo permanecia em sua clausura até a noite com medo de encontrar Rodrigo nas ruas e só saia depois que escurecia para mergulhar no riacho.

***

Certa noite Rodrigo foi à seu encontro no riacho. A princípio a reação de James foi das piores, mas acabaram conversando e fazendo as pazes. Os dias que precederam o encontro foram alegres para os dois. Rodrigo contava de suas aventuras em Curitiba, falava sem parar. Sapo se contentava em ouvir e imaginar como seria ter tido aquela vida. Mas nenhuma palavra do internato.

Rodrigo freqüentava a casa de Dona Carla quase que diariamente. Chegava cedo, saia para um passeio com James, jogava bola enquanto Sapo assistia e depois iam se banhar no riacho. Este era freqüentado por outras pessoas, algumas moças inclusive. Rodrigo tinha facilidade com elas.

Foi nessa época em que James conheceu a amizade com alguém que não fosse Rodrigo: uma moça cuja reputação e beleza eram duvidosas. Com ela também conheceu o sexo. Estavam os três sentados na beira do riacho, era tarde de domingo e chovia um pouco, ninguém mais se encontrava por lá. Rodrigo disse que ia nadar em um ponto mais baixo e deixou Sapo e a moça sozinhos.

O nome dela era Vitória, mas todos a chamavam de Vi, menos James que não se sentia à vontade. Com a desculpa de que fazia frio ela se chegou a James e o abraçou. Pediu para ser abraçada. Colocou sua mão no peito branco e sem formas de James e foi descendo. Rodrigo voltou meia hora depois e encontrou somente James deitado com ar de perplexidade e satisfação no rosto.

***

A alegria de todos acabou em uma sexta feira. A cidade em questão era muito pequena e todos conheciam todos. Era segura, nunca havia tido notícias de brigas ou roubos e a única coisa parecida ligada a polícia era na intendência municipal onde bêbados passavam as noites e era cuidada por três pessoas apenas. Por isso todos estranharam quando apareceu por lá uma viatura da polícia vindo direto da capital. Dois policiais tinham ordem de prender Rodrigo de Souza sobre acusação de assassinato.

Quatro anos antes, quando Rodrigo acabava de chegar ao internato, havia se metido em uma briga por causa de mulher. Ela dizia que seu namorado tentava estuprá-la e Rodrigo interveio a favor dela. O namorado acabou morte e Rodrigo fugiu assustado.

Naquele dia chovia forte e Rodrigo almoçava na casa de Dona Carla. Os policiais bateram e, antes que alguém fosse abrir, eles foram logo entrando. Contaram para Carla e Alice, que estavam na sala com Rodrigo, o que havia acontecido. Este nem esboçou alguma reação violenta ou tentativa de fuga. Um dos policias o algemou enquanto o outro foi para o carro.

James ouviu tudo da cozinha, descrente, perdido. Mesmo sendo um pouco lento de raciocínio podia perceber que aquilo não era bom e que levariam seu amigo para sempre. Levariam seu único amigo, aquele que o defendera no futebol e que lhe apresentou a Vitória.

O carro lá fora estava ligado, o policial que estava fora levava Rodrigo algemado pelo jardim. Passavam pelo toco de árvore quando James correu de dentro da casa e, com um cutelo, atacou o policial pelas costas. A multidão que se encontrava na rua ficou perplexa, o policial que estava no carro sacou sua arma. James correu em direção ao quintal pela lateral da casa onde pulou uma cerca e foi na direção norte da cidade. Um tiro passou zunindo pelo seu ouvido e o policial correu no seu encalço.

Enquanto James corria pensava em seu pai. Tinha a vívida imagem dele sentado no toco da árvore, fumando seu charuto. Chegou a ver seu pai lá sentado enquanto atacava o policial e pode até mesmo pressentir que ele o apoiava.

Chegou no riacho. A corredeira estava forte e o nível havia aumentado bastante. James foi entrando na água. Quanto mais se assustava mais fundo ia e os tiros do policial o assustavam muito. Foi indo em direção a parte mais funda, cada vez mais funda até a hora que a correnteza o levou.

***

Não se sabe se James foi atingido por uma bala ou se simplesmente se deixou levar pela correnteza. Seu corpo nunca foi achado.

Mesmo sem corpo toda a cidade, com exceção de Rodrigo, foi até o enterro. Dona Carla parecia inconsolável, assim como Alice. Foi rezada uma missa em que o padre levou muitos às lágrimas, inclusive a si próprio.

Alguns mais esperançosos, por mais que digam o contrário, acreditam que James conseguiu fugir e que a qualquer dia volta. A grande maioria pensa que ele morreu com um disparo. Mas de todas as teorias, a que Dona Carla mais gosta é daquela que dizem que ele nadou, nadou tanto que acabou tomando sua verdadeira forma de sapo e que agora passeia aos pulos pela cidade. Acredita que qualquer hora o verá sentado no toco da árvore ao lado de seu pai.

sábado, 17 de outubro de 2009

A Volta do Não Diálogos

Depois de todos os comentários e emails que recebi, decidi dar uma sobre vida ao Não Diálogos. Fico grato a todos que escreveram e espero que continuem lendo.
Logo coloco mais um post.
Abraços.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Fim do Não Diálogos

Chega, isso foi longe demais.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

19 Anos

So nobody ever told you baby

How it was gonna be…

Gun´s and Roses

Não, ninguém lhe havia dito. Agora ela se encontra em casa, sentada na mesa da cozinha, um caneco de café à sua frente, a solidão ao seu redor. Completou ontem seus vinte anos. Da adolescência que acaba ela guarda em si as cicatrizes de acne no rosto e a certeza de que essa foi uma etapa que passou e ela não aproveitou. Não teve namoros efêmeros, não foi a bares com amigos... Diabos, nunca nem os teve.

Se levanta e vai até a geladeira onde resta um pedaço de bolo da noite anterior. Muito marshmallow e frutas, muito creme e velas, mas poucos para comemorar, somente seus pais. Pouco também a ser comemorado.

Na cadeira a sua frente se encontra o tédio, dentro do peito a angústia. No telefone uma esperança remota, a espera de algo, não se sabe o que.

Levanta e se serve de mais um caneco de café, desta vez com leite. No ano passado as coisas foram diferentes. A Júlia estava na festa e um pouco de alegria se encontrava lá. Dali as duas foram para o bar e trocaram o primeiro beijo. Antes daquilo tinham sido só expectativas, sonhos.

As duas se conheceram pouco tempo antes. Júlia era secretária de seu pai, cinco anos mais velha e sabia tocar piano. Começou a ensinar piano para ela por insistência do pai que queria tirar sua filha da mesmice que se encontrava. E deu certo. Naqueles três meses de aula que antecederam seu aniversário de dezenove anos as coisas foram diferentes. Carla, que agora se lembra daquela época enquanto olha fixamente para a xícara de café, foi uma pessoa diferente naqueles breves três meses.

No começo tinha aversão ao piano. O piano lhe lembrava os encontros de família em que sua avó, agora falecida, tocava horas e horas suas músicas “clássicas” enquanto todos ficavam a sua volta fingindo admiração e tentando esconder os bocejos. Nesses encontros seus primos levavam seus pares. Carla nunca chegou a levar nenhum amigo, não os tinha.

Mas Júlia lhe mostrou que nem só de “músicas de vovó” vivia o piano e ensinou a tocar Easy do Faith No More. Era uma música fácil e até Carla que se considerava uma medíocre em tudo conseguiu tocar com precisão.

Nasceu aí um coleguismo que virou amizade. Terças e quintas depois de seu expediente no escritório, Júlia ia para casa de seu chefe e ensinava Carla durante dez minutos. Depois disso as duas se sentavam diante do piano enquanto conversavam e Júlia tocava algo. O pai de Carla bem sabia que ela não estava aprendendo nada, nem se esforçava, mas sabia que aqueles encontros faziam bem para filha. Desde que havia saído do segundo grau e decidido tirar umas férias antes de pensar em faculdade, Carla não acordava cedo, não se importava com nada exceto seu aparelho de som.

Uma coisa que Júlia teve muito êxito foi em ensinar uns tipos diferentes de música para Carla. Esta última deixou de ouvir tanto Radiohead e músicas tristes e passou para o pop, músicas indies e afins. Também conseguiu ensinar Carla, em apenas um dia, a tocar parabéns para você que no dia seguinte tocaria diante dos pais e de Júlia durante sua festa de seus dezenove anos.

Fazia uma semana que ela não dormia. Faltava pouco para seu aniversário e ela ainda tinha a intenção de seguir com seu plano: se declarar para Júlia e torná-la algo a mais que amiga. Ela tinha a impressão que seu pai pressentia seus planos e que de alguma forma apoiava. Sua mãe lhe olhava estranho, talvez coincidência. Mas tudo o que lhe importava era a reação de sua amiga. Passava noites em claro não pelo medo e sim pela expectativa, pelo desejo. Sim, um pouco de medo também. Nunca tinha feito aquilo, nem com um rapaz.

A noite da festa chegou, estavam todos os quatro empolgados, principalmente Carla. O bolo com marshmallow, creme frutas e velas estava sobre a mesa. Seria uma comemoração breve pois as moças tinham que sair. Estava bem vestida, perfumada, maquiada. Todos estranharam aquela preparação toda, mas afinal, não sabia se vestir para ir a um bar. Este estava lotado. Ficaram na fila por um tempo, que por sorte passou logo e, ao atravessar a porta, Carla era alguém diferente. Dançou, bebeu pouco mas bebeu, flertou com rapazes de forma inocente sobre os olhares orgulhosos de Júlia.

Até que a beijou. A princípio Júlia retribuiu, as duas ficaram naquele momento de cumplicidade por um bom tempo. Olharam nos olhos uma da outra. Carla em puro êxtase, Júlia em assombro. Esta última não conseguia atinar nada, esquivou a tentativa de um segundo beijo e se foi.

Carla se quedou sozinha na pista do bar. Esperava por algo como aquilo, mas não esperava que Júlia não voltasse a dar mais aulas e confabular por horas durante a noite.

Seu pai parecia saber de tudo e a tentou consolar. Sua mão engoliu o orgulho e fez o mesmo. Uma semana depois e a sua rotina tinha voltado a ser a mesma de antes: acordar tarde; não fazer nada; dormir cedo.

Não, ninguém lhe havia dito como seria. Ela aprendeu da maneira mais difícil. Os dedos de Júlia nas teclas brancas e pretas ainda povoam sua mente. Enquanto olha para a xícara e pensa, da um pequeno sorriso. Foi um bom aniversário no final das contas.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

2016

Don’t Let Me Down

The Beatles

Lá fora faz calor, mas as nuvens começam a encobrir e céu anunciando chuva. O condomínio com seus trinta blocos e sua quadra de esportes no centro estão vazios. Todos que não estão trabalhando se encontram em casa, todos assistindo o mesmo canal. Em instantes será anunciada a sede das Olimpíadas de 2016. Em algumas janelas pode-se ver bandeiras do Brasil estendidas e em alguns momentos se ouvem buzinas soando em algum lugar.

Ele também se encontra em casa. Está sentado em um sofá de três lugares com sua TV de plasma ligada no canal do anúncio. São 13:29 e a qualquer momento será feito o pronunciamento. Mas sua mente não está ali. Esta na viagem que fará dentro de meses.

Talvez algum dia consiga, mas no momento não, dizer o que o fez ter aquela idéia da viagem. Nas suas aulas de Espanhol as pessoas diziam o quanto era barato estudar na Argentina, das vantagens, dos passeios que se pode fazer. Mas o ponto que mais lhe chamou a atenção é que todos aqueles que estudavam com ele eram viajados, tinham trazido cultura de outros países, de outros lugares. Até ele admite que foi um pouco de inveja que o fez querer viajar, mas não somente.

Ontem ele terminou mais um livro e dele surgiu mais uma hipótese: viajar para terminar de nascer. Sim, Buenos Aires seria sua casca do ovo e ele teria de quebrar sozinho. Ninguém estaria por perto. Essa idéia lhe dava calafrios. Não demorou tanto assim, já agora ele sabe que a viagem é mais que uma aventura, mais que experiências culturais e lazer. É uma viagem que vai determinar como será sua vida daqui em diante.

Na TV se vêem fogos no dia claro, as pessoas se abraçam, estouram espumantes. O Brasil vai sediar as olimpíadas. Ele até poderia colocar um ponto de exclamação mas não esta eufórico. Deitado no sofá se encontra em um estado de modorra, pré sesta. Não sabe dizer se aquilo é um princípio de sonho ou se é a realidade. Se for realidade ela está deturpada pois ele não está totalmente desperto. Ele se encontra agora nas ruas da Recoleta com diversas pessoas ao seu redor comemorando o feito. Mas que feito ? Os jogos não serão aqui. O que tantos “hermanos” comemoram, com camisas da seleção Argentina e bandeiras tremulando no ar ?

Uma voz mais alta na TV o desperta por completo. É o Presidente que agora faz um pronunciamento.

Ele se levanta e vai lavar o rosto no banheiro. Sabe que após lavar o rosto se sentira melhor, mais animado, pronto para os preparativos. Não foi dito ainda, mas os preparativos da viagem começam hoje. Ele já recebeu seus papéis do colégio onde vai estudar, sabe onde vai dormir e pode começar os preparativos.

Na mesa da sala se encontram alguns guias, panfletos que ganhou na agência e um computador. Pesquisa intensamente, alternando os guias com a Internet. Sabe agora o que fazer nos primeiros dez dias. Viu tantas fotos e mapas que parece ser íntimo da cidade.

Mas ele sabe que não são esses os preparativos que tem de fazer. “Para acabar de nascer” – pensa em tom professoral – “é preciso ter o corpo pronto”. Para quebrar a casca tem de estar com o corpo forte, pois não será fácil. Parar de fumar foi o primeiro passo, mais difícil do que todos imaginam, mas ele conseguiu. Mas ainda não consegue acordar cedo. Não consegue parar de depender dos outros. Três meses parece bastante tempo, mas talvez não seja suficiente. Sabe cozinhar, mas não cozinha. Sabe o que deve fazer, mas não faz.

O roteiro está quase pronto, memorizado. O espanhol está afiado, mas será o suficiente? Não é.

Só os Beatles o podem ajudar. Talvez por eles terem milhares de músicas e outras dezenas de milhares de refrões, os Beatles são sempre a resposta para problemas. Ele corre o dedo pelo seu iPod em busca de uma música que pode servir. Sabe que vai achar. Don´t Let me Down. Não, ele não pode decepcionar a si mesmo. Simplesmente não pode e não vai. Vai andar pela Recoleta, por Córdoba, pelas cidades vizinhas, vai visitar o El Ateneo e tudo isso de cabeça erguida, firme em seus propósito e socando a casca o máximo que puder.

A música o deixa extasiado. Agora na TV uma apresentadora diz coisas (ele não ouve pois colocou a TV no mudo) propondo um brinde. Lendo os lábios dela ele consegue entender: “Agora um brinde para aqueles que tem coragem, que tem o poder sobrenatural de ver o problema e agir sobre eles, quem vêem as dificuldades mas que são mais fortes que ela. Para todos esses, um brinde”. Ele ergue seu copo de Coca e agora a voz dos Beatles dizem (imploram?) Don´t Let me Down.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

CTRL + R

Para quem não sabe, CTRL R, quando pressionado em um navegador de Internet tem o poder de atualizar a página que está sendo visitada. Com dois simples botões um novo mundo, atualizado e recente se abre diante as pessoas.

Camargo sabia perfeitamente isso. Fazia duas semanas que sua mão pequena e gorda apertava tais botões de maneira frenética, com intervalo tão pequeno que uma pessoa que vê de fora taxaria aquilo como ridículo no começo, patético com algum tempo. Mas ele não cessava. Era de seu conhecimento que sua página de emails se atualizava automaticamente com uma regularidade de dez minutos, mas sua ânsia, sua expectativa de receber a mensagem fazia com que esse intervalo se tornasse grande demais, uma tortura.

Naquele dia, fazia duas semanas exatas que sua rotina era a mesma: de bermuda de banho e um chinelo havaianas nos pés, uma camisa de mangas compridas em seu corpo gordo e baixo, ele seguia em frente ao computador em sua tortuosa expectativa. No intervalo de cada atualização ele perdia seu tempo com outros sites, navegação besta e sem propósito.

Não somente os terceiros que olhassem de fora aquela cena sentiriam pena daquela criatura. Ele algumas vezes se encontrou a pensar no despropósito de tudo aquilo, mas a inércia era muito grande e o manteve sentado em frente aquele computador todo aquele tempo.

Camargo havia se formado a pouco. Sua graduação em biologia tinha se dado de forma medíocre, o suficiente para que em seis anos ele houvesse concluído o curso, colado grau e tivesse permissão para apagar de sua mente todo o conhecimento adquiridos de invertebrados, platelmintos, pseudópodes e afins. Apagou com gosto as experiências com os colegas de classe e de suas andanças pelo campus arborizado da faculdade.

Uma das lembranças que custavam a sair de sua mente era a do dia do trote de iniciação do curso. Coberto de lama, vestido com um saiote e com os lábio e arredores cobertos de batom, Camargo permaneceu durante horas de pé em uma esquina arrecadando dinheiro que supostamente iria usar para pagar os livros do curso, mas que na verdade seriam para pagar os engradados de cerveja da festa que daria continuidade ao trote, a qual ele não participou. Estava claro para ele que foi aquele o dia decisivo em que a Biologia, a faculdade e todo o convívio com pessoas havia deixado de fazer sentido. Nunca havia sido tão humilhado. Agora, em frente ao computador, apertando CTRL R a intervalos mínimos, ele percebia o quanto estava humilhando a si mesmo, perante ele mesmo.

Engana-se quem pensa que não recebia mensagens. Recebia muitas. Ávido comprador de lojas on-line, recebia uma porção de propagandas e informações sobre diversos produtos, de diversas lojas, em sua maioria de computação. Sentia que já era amigo de pessoas com nomes bizarros como "no-reply", "atendimentoaocliente", "mailer", todos seguidos de arroubas e seus respectivos sobrenomes. Mas a mensagem que ele tanto esperava não chegava.

E se não chegasse nunca ? E, se ao completar o décimo quinto ano de espera e nada houvesse chego, quando ele igualasse a marca do coronel que, esperou por uma carta por quinze anos e nunca a recebeu, o que faria ? Procurava não pensar nisso. E mesmo que tentasse teria a certeza de não conseguir. Sua mente estava presa em apertar aquelas duas teclas. Os diversos catálogos eletrônicos, os jogos que ocupavam seu tempo entre as atualizações não representavam nada para ele. Sua cabeça era um vácuo incapaz de libertar-se.

No décimo quinto dias, logo que acordou se deu conta da felicidade em que se encontrava. Um cheiro de café fresco vinha da cozinha, tomava conta, convidativo, do quarto. Percebeu com facilidade, mas custou saber o que era aquilo que tomava conta dele. O computador estava ligado no canto do quarto, como que o chamasse para mais um dia de trabalho. Fugindo da rotina tomou uma ducha demorada, sem nem mesmo consultar a caixa de entrada antes. Tomou café com sua mãe, coisa que não lhe era comum. Depois de alimentar seu ramster que ficava na despensa apertou o CTRL R. Nenhuma mensagem. Sorriu com o canto dos olhos. Percebeu que seu quarto estava escuro, não entrava luz à semanas. Desligou o computador, tirou o fio da tomada e abriu a persiana e a janela. De repente, um mundo novo se atualizou diante dele.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

No Avião (Rascunho)

Como antecipação da viagem que farei em janeiro para Argentina criei esse post. É uma tentativa de apaziguar as expectativas da viagem. Vou passar um mês em Buenos Aires estudando e passeando. Espero escrever muito por lá também.

Devido aos últimos atentados que ocorreram em aviões, o vôo que peguei de Curitiba à Argentina estava vazio, somente algumas poltronas dispersas estavam ocupadas. Nunca havia viajado em avião e a expectativa era grande. Meu irmão havia dito do frio na barriga que da quando o avião decola e minha mãe do medo que da quando a turbulência é forte. Mas minhas expectativas eram grandes. Uma vez vi em um filme ou comercial um avião voando acima de um temporal. Um avião nadando sobre um mar de nuvens carregadas banhado por um sol grandioso e imponente. Me disseram que daqui até a Argentina eu nunca iria ver isso por causa da baixa altitude do vôo. Mas quem sabe? Talvez o piloto errasse a rota e nós fossemos parar em um lugar completamente diferente do destino. A mim não faria diferença. Quando se está fugindo não faz diferença para onde vai, contando que seja longe.

Para dizer a verdade não senti nada diferente durante a viagem. A impressão que tinha de que iria acontecer algo grandioso, uma vista estupenda que ficaria marcada em mim para sempre, uma visita rápida ao minúsculo banheiro com uma aeromoça, quem sabe, ou até mesmo um desses atentados que significaria o fim da minha vida, nada disso aconteceu. Para falar a verdade gosto mais é de viajar de carro pela serra onde há mais paisagens bonitas que aquela imensidão azul.

Nas poucas vezes que viajei, o que mais me chamou a atenção foram as ruas e a arquitetura dos prédios. Não pela arte presente nelas mas sim por ser um lugar que vi pela primeira vez, onde nunca botei os pés antes e que difere muito dos lugares da minha cidade natal. Logo que o avião pousou e eu olhei ao redor fui tomado por essa sensação de estréia, de primeira vez. Um lugar completamente diferente onde eu poderia iniciar uma nova vida.

Minha primeira vez no amor foi um tanto tarde. Fui sempre muito ligado à família, o que talvez não justifique, mas sempre preferi ficar em casa com meus pais e irmãos do que sair em bares à caça de mulheres. Gostava de assistir filmes nos fins de semana, principalmente quando meus pais e meu irmão saiam e só ficava eu e a Isabel, minha irmã, em casa. Assim cada um podia se esticar em um dos sofás e assistir o filme mais confortavelmente. Às vezes fazíamos pipoca na panela mas era raro porque nós dois tínhamos preguiça de lavar a louça depois. Era bom porque nós gostávamos dos mesmos filmes de aventura e tínhamos o costume de ver-los mais de uma vez. Desde que essa onda de violência se instalou no país não parava filmes novos nas prateleiras das locadoras. Acho que só meus pais tinham ainda a coragem de irem à restaurantes. Tivemos também nossa fase de ver filmes de romance. Durante pelo menos seis meses foi o que mais assistimos, talvez só o que assistimos. Mas o que realmente era uma unanimidade entre nós dois eram os filmes com avião. Desses que os pilotos morrem e um cara qualquer pousa o avião com precisão, ou aqueles em que um grupo terrorista invadia o vôo e também um qualquer salvava a todos. O que nos encantava era que a gente podia ser um daqueles qualquer.

Foi somente em Isabel que eu pensei durante o vôo. Quando o comandante do vôo liberou o uso de aparelhos eletrônico eu liguei meu rádio em um CD do Couting Crows. Como ela odiava aquele CD! Como um tributo à ela passei a ouvir PJ Harvey que era algo que nós dois gostávamos de ouvir. Fechei os olhos e comecei a lembrar da infância.

Uma infância passada totalmente na cidade. Raramente descíamos a serra para ir à praia, e era a cidade o nosso refúgio. Todos aqueles prédios altos, os tons de cinza, o trânsito, a fumaça, até as pichações nos agradavam. Uma vez uma colega de classe me disse que todos tem um lugar especial, aquele que é só nosso. O nosso lugar era uma praça perto de casa. No fim das tardes de calor e sol as crianças lotavam a praça, brincavam no parquinho com suas mães e babás. Mas era nos dias nublados e chuvosos que nós gostávamos de ir para lá. Sentava cada um em sua balança e ficava lá, sem conversar, sem se olhar, com os olhos fixos no chão aproveitando daquele silêncio comunicativo.

Isabel sempre foi sem dúvida minha melhor amiga. Nosso outro irmão era muito mais velho e Isabel e eu nascemos quase juntos. Minha mãe vivia invocada com os colégios que nós estudávamos, implicava muito com os planos pedagógico e assim nós mudávamos muito de colégio. Era difícil fazer amizades duradouras, então desistimos e nos refugiamos um no outro. Não sentíamos falta de mais nada. O que um não tinha o outro supria e assim passamos nossa infância e nossa vida.

Com a chegada da adolescência as coisas começaram a mudar. Eu passava boa parte do dia trancado no banheiro e Isabel ficava cada vez mais isolada no seu quarto. Fui saber mais tarde que ela escrevia um diário que eu nunca cheguei a ler. Mas nosso passeio à praça em dias nublados e chuvosos continuava. Muitas das vezes um dois quebrava o silêncio. Ela dizia coisas pesadas, meio filosóficas. Era uma menina inteligente e acho que era isso que lhe dava aquele ar taciturno, semblante sempre fechado e pensativo. Eu lhe perguntava coisas sobre as mulheres e algumas vezes pedia que ela me apresentasse alguma colega para eu sair. Parei de pedir isso porque a deixava nervosa, inquieta.

A aeromoça me trouxe uma bebida, um suco meio quente de laranja e encostou sua mão na minha. Aquilo me deu um flashback imediato do dia em que assistimos “Assédio Sexual” na tevê. O Júlio, nosso irmão, se esticou no sofá grande com duas cobertas até o pescoço. A Isabel ficou brava porque ele não quis ficar com o sofá menor mas não adiantou: ficamos nós dois a dividir o sofá de dois lugares, cada um sentado num gomo com uma coberta de lã. O filme era muito chato. Talvez eu nunca fosse lembrar dele não fosse o que aconteceu durante o filme. O Júlio roncava desde os dez primeiros minutos. Eu pensava em fazer o mesmo quando, em uma cena de sexo entre Michael Douglas e Demi Moore, a Isabel me segurou a mão e apertou forte. A cena durou pouco e logo que acabou ela soltou minha mão, levantou-se e foi para o quarto. Eu não soube o que fazer. Apertei o pause no controle e esperei que ela voltasse mas não voltou. Me quedei em um silêncio quase total e procurei acalmar minha respiração com o ressonar do meu irmão mas não era possível. Meu corpo tremia, minhas mãos suavam e eu ainda tinha aquela ereção que me preocupava pois não sabia se era por causa da cena forte ou pelo que tinha passado na sala. Mas afinal, o que foi que passou naquela sala? Seria só uma coincidência, ela segurou minha mão como um boa noite silencioso ou era algo mais significativo?

Na manhã seguinte, quando acordei ela já havia ido ao colégio. Tirei o Júlio do sofá onde tinha dormido e preparei meu café da manhã. Chegando no colégio evitei ao máximo passar pela sala de minha irmã. Ainda não sabia lidar com aquilo que havia passado. Nem sabia se havia passado algo realmente. Foi uma manhã de tortura. Durante as aulas não consegui me concentrar em nenhum momento e de quando em quando tinha que lidar com uma excitação repentina que agora tinha certeza de não ser pelo filme. Ela é minha irmã, pelo amor de Deus! Eu me repetia aquilo como se fosse apaziguar as coisas mas só pioravam. Ela é minha irmã...

Saí do colégio antes de começar a última aula. Fui a pé como de costume, não me importando com o tempo que estava gastando. Não tinha pressa de nada, estava absorto em meus pensamentos. Quando tentava atravessar uma rua fui surpreendido por um carro que passava em alta velocidade e buzinou como um louco porque eu o fiz desviar de mim. Por um momento desejei que ele tivesse me acertado, assim eu iria parar no hospital e teria outras coisas para povoarem minha mente.

Quando cheguei em casa somente ela estava lá. Não usava o uniforme e logo percebi que não havia ido à escola. Encontrei ela na cozinha e ficamos cada um de um lado da mesa, frente a frente, nos encarando por um longo tempo. Aproximou-se um passo de mim de forma acanhada e eu fiz o mesmo. Mas um longo silêncio. Um longo e significativo silêncio. Naquele momento tive a sensação de que não que éramos irmãos, que nunca havíamos sido, que nunca ficamos sentado lado a lado na praça durante nossa infância. Foi o que me fez avançar em direção dela tomado de desejo. Ela fez o mesmo e em meio caminho nos encontramos e nos beijamos ferozmente. Tudo se desanuviou em minha mente e eu só tinha pensamento para seu corpo, seus lábios, seus seios. Parecia ter esperado por aquilo durante toda minha vida, mas ela só havia deixado de ser minha irmã na noite anterior. Agora eu a tinha nos braços, ela me tinha nos braços.

Como se ao mesmo tempo nos déssemos conta do que estávamos fazendo nos afastamos. Sua cara agora era de pânico, talvez nojo, e algumas lágrimas brotavam de seus olhos. Não, era medo, vergonha. Ela correu para o quarto e eu não quis impedir. Queria me ver livre dela, de toda aquela situação. Sentei em uma cadeira e deitei a cabeça sobre a mesma. Assim fiquei por muitos minutos. Os outros chegaram e, como percebessem meu olhar abatido e distante se puseram a perguntar coisas, o que havia acontecido. Me recompus, disse que não me sentia bem e subi para o quarto. Ao passar por seu quarto vi minha irmã estendida sobre a cama, o edredom e o chão sujos de sangue e uma lâmina estendida sobre a cama.

Antes de o avião pousar eu já tinha a certeza de que fugia daquele barulho de sirenes que tomaram conta daquela tarde, do policial que me interrogou durante um bom tempo e da imagem dos meus pais e do Júlio em estado de choque, sentados nos sofás sem entender o que havia acontecido.

Dois meses depois daquele dia eu desço as escadas do avião e desejo que tenha deixado nas nuvens tudo o que passou. Sonho ser capaz de poder esquecer, mas quando apanho minha malas na esteira sinto que ela esta comigo, sinto seu hálito no ar e percebo que de certas coisas não há como fugir.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Quase

Certas coisas nós nos lembramos de uma forma enigmática. Somem os detalhes e você se queda apenas com as sensações e sentimentos. As músicas às vezes.

Daquela tarde de verão de mais de quinze anos atrás eu só me lembrava do calor e do meu irmão mais velho. O Guilherme, irmão do meio, estava viajando e meus pais estavam em estado total de modorra no quarto. O calor era tanto que ninguém no bairro saía de suas casas.Somente eu e o Alexandre na rua.

Boa parte do tempo nós caminhávamos pelas ruas desertas, cada um com um dos fones de ouvido escutando “Nevermind”. Eu só fui me lembrar exatamente da música agora que devo tê-la escutado pela milésima vez em minha vida, a primeira hoje e a única vez que a escuto desta forma.

Algo que eu só lembrei agora foi de que o Alexandre quis me levar para um jogo do Coritiba. Eu nunca tinha ido a um jogo antes e nem sei se na época eu já era Atleticano. A simples idéia de eu ir a um jogo de futebol pela primeira vez em minha vida, naquela que era a tarde mais quente e tediosa, me deixou extasiado.

A princípio foi difícil convencer meus pais a nos deixarem ir. Apesar de o Ale ser bem adulto, eu era pequeno demais. Não ajudou nada o fato de nós termos acordado os dois.

Quando finalmente, depois de muito choro e uma infindável lista de recomendações nós conseguimos autorização, rumamos direto para à frente da papelaria onde iríamos encontrar um táxi que nos levasse ao Couto Pereira.

Não havia nenhum. Me sentei no banco a espera do taxi enquanto assistia meu irmão mais velho fazer embaixadas com uma bola imaginária (ou seria com uma bola de papel ?) Sempre que eu pensava naquele dia eu lembrava apenas do calor e da música, que eu pensava ser uma do Alice in Chains. Mais agora eu estou certo de que era Nevermind. Em todos os casos, nevermind, o que realmente importa é que o taxi não chegou. Era domingo e, por mais que nós esperássemos o tempo que fosse o taxi não chegaria.

Assistimos juntos o sol mudar as matizes de cores do céu e quando os primeiros torcedores passaram pelas ruas buzinando nós voltamos para casa. Cinco anos depois esse meu irmão mais velho, o Alexandre, morreu. Dele só me sobraram uma foto três por quatro e, mais vivamente agora, a lembrança daquele dia. E só de pensar que se um taxi estivesse ali naquele hora pronto para nos levar para aquele estádio eu não seria Atleticano, me causa arrepios.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Carola

Com esse texto participei do II Concurso da Revista Piauí.
A regra era usar a frase em negrito, originalmente de Proust, durante o texto. Tinha também um limite máximo de três mil e poucos caracteres

As erupções na pele marcaram minha adolescência e parte de minha juventude, e deixaram marcas que me seguem por toda vida. A elas dou o crédito de minha timidez, do meu caráter introvertido, e a culpo por ter casado com quem casei.
Quando se tem vinte anos e ainda é virgem, não conheceu os amores, nem carnais nem do coração, você acaba deixando de ser exigente com mulheres. Pois eu tinha vinte anos e era virgem quando conheci Carola.
Não era bela, longe disso. Tampouco era repugnante. Seu intelecto único, sua visão peculiar das coisas, não fazia dela um ser apaixonante. Tinha seu charme, no entanto. Era mestra na arte de encantar devido a um certo ar de superioridade e domínio que exercia. Pelo menos em mim.
Dizem que quando se tem vinte anos e ainda é virgem, sua primeira mulher é aquela que será sua última. Aquela com quem você irá se casar, ter filhos, netos, não por amor, mas sim pela marca que ela irá lhe deixar à fogo na pele. Foi o que aconteceu comigo. Quando me deitei com ela logo percebi que uma espécie de encanto, de magia, tomou conta de mim a ponto de me dominar pelas últimas duas décadas. Como amei Carola! Por ela perdi noites de sono, perdi o gosto pelas coisas mais adoráveis da vida para lhe dedicar completamente o meu amor. E por ela fui pisado por um bom tempo. No entanto não me arrependo. Depois das várias idas e vindas, dos dias tortuosos que passamos separados por ela não achar que eu a amava o suficiente, quando ela finalmente aceitou ser minha esposa, fui um homem completo.
Logo veio nosso primeiro filho. Estava dominado pelo feitiço que ela me causara e agora pelo presente que havia me dado. Não percebia que estava preso por suas artimanhas.
Quando meu pai faleceu deixou para mim uma pequena fortuna. Era Carola quem a administrava com certo descuido. Sempre achei encantadores seus vestidos, de boa qualidade e bom gosto. Me encantavam as viagens que fazíamos pelo mundo e o conforto que tínhamos em casa. Eu vivia um sonho do qual só fui acordado quando o dinheiro acabou. Estava tão cego e perdido de amores por Carola, por aquela vida de regalias que levava, que não percebi que o dinheiro se esvaia. E o amor que eu acreditava que ela tinha por mim foi sumindo. Certo desprezo começou a tomar seu lugar. A coisa foi tão severa que cheguei a por em dúvida o amor que eu sentia por ela.
Foi num certo dia, quando ela voltou de uma loja onde seu crédito não havia sido aceito, que tudo culminou de forma rápida e repentina, e eu soube a farsa que foi minha vida. Em meus ouvidos ainda ressoavam frases como, “sempre te desprezei”, “você nunca foi digno de me ter como esposa”, quando me dirigi até a cozinha e apanhei a faca. Não foi nada premeditado, tampouco foi algo súbito. Sabia bem o que estava fazendo e em nenhum momento pus em dúvida meus atos. Mesmo de costa para mim podia ver seu olhar mesquinho, podia sentir seu desprezo. A faca correu macia e em pouco tempo ela engasgava com o próprio sangue estendida no chão.
E dizer que estraguei anos de minha vida, que eu quis morrer, que tive meu maior amor, por uma mulher que não me agradava, que não fazia o meu gênero!

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Os Capitães do Asfalto

Depois do divórcio de meus pais, fui morar com minha mãe e meu irmão em Florianópolis. Foram tempos difíceis. Tinha uns quinze anos e não conhecia ninguém. Com a chegada das férias as coisas melhoraram e, após muitas tentativas frustradas, eu e meu irmão conseguimos nos enturmar com as crianças de nosso prédio. Costumo pensar neles como os Capitães da Areia, sem os roubos e maldades, com um pouco mais de carinho. Em pouco tempo nós éramos mais dois deles, os Capitães do Asfalto.
Não importava se era dia de escola ou fim de semana, a correria pelas ruas, seja brincando de esconde-esconde ou de bandido e mocinho, ia até tarde, longos períodos sem comer e bebendo água em uma torneira qualquer. A liberdade era nosso lema, sem ao menos saber a profundidade desta palavra. Foi bem na época em que começou a despertar a atração pelas meninas, passávamos horas galanteando as garotas de nosso grupo, vezes com sucesso e muitas sem.
Nosso ponto de encontro era o prédio ao lado do que eu morava, no Algarves. Lá moravam muitos de nós, era nossa rua, nosso campo de futebol, nossa base. E lá morava uma figura única, o participante mais ativo do grupo. A sacada de seu apartamento dava de frente para a Esteves Jr. e de lá ele não saia. Não sei seu nome nem sua idade. Sempre pareceu bem mais velho. Ele tinha algum problema mental e passava o dia a cumprimentar as pessoas da sacada de seu apartamento. A única coisa que dizia era "oi", mas um oi anasalado, com algum sinal de "n" no final. Aquele oi era a marca dos meus dias, algo que dizia que tudo estava em seu lugar.
Após um ano voltei para Curitiba. Deixava para trás uma vida de um ano, deixava amigos, os Capitães do Asfalto. Nem tive tempo de sentir falta deles. Logo as aulas aqui começaram e eu tive de estudar muito pois eram bem mais difíceis, os professores mais exigentes. Com o tempo me enturmei com um pessoal da escola nova e esqueci completamente aquele ano.
Então tudo aconteceu muito rápido; a primeira namorada; as saídas à bares; vestibular; faculdade. Quando me dei conta estava com vinte e cinco anos e de férias marcadas para Florianópolis. Era minha primeira visita desde que a havia abandonado. Tinha perdido contato com os amigos antigos, com a antiga vida levava.
A cidade havia mudado de maneira absurda. Ao lado do Algarves agora se erguia um prédio alto e do lado dele mais dois estavam quase prontos. Cafés enchiam as ruas onde antes eu conhecia como a palma da minha mão. Conversei com o porteiro do Algarves e ele não conhecia nenhum dos meus amigos. Era como se não tivessem existido. Na saída, meio cabisbaixo, senti aquele cheiro peculiar, o cheiro de Florianópolis, e alguém do primeiro andar do prédio dizia um "oi" anasalado para todos que passavam. Como José Arcádio Buendía tinha previsto, a seta do tempo havia parado, e lá estava eu vivendo minha vida novamente.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Eleanor Rigby

O telefone ainda é aqueles de disco que você tem de girar para discar os número. Acho que é dai que vem a expressão discar. O bocal do telefone esta encardido, da para ver a sujeira acumulada nos buraquinhos. No entanto, não sinto vontade de limpar.
Da minha carteira de couro marrom, uma hipocrisia para um vegetariano, que também serve de agenda, eu tiro um papel amassado com um telefone, assim como já fiz inúmeras vezes antes. Giro o disco do telefone e espero que ele volte a posição inicial para poder gira-lo novamente, e faço isso mais sete vezes. Deve ser o suficiente. Espero os toques necessários até que alguém atenda, mas minha paciência acaba e eu ponho o fone no gancho.
Na rádio toca Eleanor Rigby e enquanto os violinos tocam estridentemente eu me pergunto de onde vem tantos solitários, a aonde eles pertencem. Tiro o telefone do gancho e faço todo o ritual novamente. Parece algo eterno. Desta vez vou esperar dar cinco toques e esse é o máximo que eu me digno a esperar. Não mais do que isso. No terceiro atendem.

A voz é de um homem e eu logo penso em alguém barbudo, barba e cabelo já brancos. Deveria me sentir ameaçado ? Apesar de não conhece-lo sei quem é, sei que suas intenções são boas mas não para mim. Ele me odeia, eu sei disso. O telefone deveria unir o mundo mas agora, aquele homem é uma barreira que me impede de conversar com ela. Eu desligo.
É outono e lá fora faz frio. O sol ilumina pela janela e me aquece. Estou sentado no pé da cama com o telefone à minha frente, no corpo apenas calças e uma regata. Eu deveria sair, dar uma volta. O apartamento me cansa, fazem cinco dias que não saio. Os restos de maçã se acumulam na pia da cozinha junto com as cascas de banana. No entanto, não sinto vontade de limpar. Uma hora ou outra eu vou ter de sair. O estoque de frutas esta acabando e comer miojo é algo que jurei nunca mais fazer.
Minhas intenções também são boas, por que eu tenho de ter medo ? Pego o telefone mais uma vez e agora vou buscar no fundo da minha alma a coragem de ir até o final. Toca uma vez, na segundo ele atende. Ouço o bocal do telefone roçar em sua barba. Não sei como mas consegui juntar forças e pedir para falar com ela. Ele não deve ter percebido quem era pois disse "Só um instante" e se foi. Nada do que temer.
Enquanto esperava fiquei pensando em quando era criança. De passear na Rua XV com meus pais me balançando pelo braço, de como aquilo era a coisa mais esperada da semana. Agora não posso mais brincar disso. Nunca mais poderei. Talvez algum dia venha a balançar alguém. Uma pessoa a quem eu possa chamar de filho.

Nós nos conhecemos alguns anos atrás mas foi só nos últimos meses que a relação ficou mais intensa. Foi no Natal que trocamos o primeiro beijo e por um bom tempo não nos largamos. Acabou quando ela soube que estava grávida. Minha alegria não podia ser maior. Ela, no entanto, passou a me odiar como se eu tivesse destruído sua vida.
Sua vida se resumia a frequentar a faculdade, ir às aulas de Francês e sair com as amigas. De certa forma destruí sua vida sim. Com seus cinco meses de gravidez ela já abandonou a faculdade, suas amigas a abandonaram e ela agora vive trancada em casa, chorando e sem o consolo de ninguém. Seu pai, se fosse uma pessoa decente e generosa, talvez a consola-se, mas às vezes penso que ele a odeia tanto quanto a mim.

Algun tempo depois de passear pela Rua XV pela última vez, meus pais morreram. Foi algo muito de repente, um acidente na estrada. Eles íam para Porto Alegre de ônibus e um caminhão vinha de Porto Alegre entregar mercadoria. Meu tio me criou desde então. Quando soube que ela estava grávida dei um sorriso de canto de boca. Era o máximo que eu podia fazer com ela charando daquele jeito. Tentei consolá-la mas ela me rechassou e eu fui para casa sem poder conter minha alegria. No caminho pensei em meus pais e na falta que eles haviam feito até agora, agora que eu seria pai.
A alegria acabou quando ela disse que iria tirar o bebê. Seria mais um caminhão em minha vida. Seu pai a dissuadiu mas ela jurou que eu nunca iria ver a criança. Eu nunca iria ver a criança. Agora eu telefono para ela pela última vez. Cansei de lutar para ser pai. Cansei de tudo. A clausura dela também é a minha. Ligo agora para dizer que ela pode fazer o que quiser, eu já não me importo mais. Nas últimas noite me peguei pensando na alegria que teria se ela morresse no parto. A criança também. Me odiei por pensar dessa forma, mas é a única coisa que consigo dizer para ela quando atendeu o telefone. Não esperei para ouvir a reação dela. Desliguei com a mesma covardia com que liguei. Agora saio de casa sem saber para onde ir, pois não sei de onde vem tantos solitário nem a aonde nós pertencemos.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Diário de uma Hora de um Estagiário

São cinco horas da tarde. Dentro de vinte minutos você vai arrumar suas coisas e se preparar para ir embora. Vai perceber que é sexta-feira e que o escritório já esta quase vazio. O dia esta escurecendo cada vez mais, a leve garoa lá de fora não vai te incomodar. Ao contrário, vai lhe dar mais ânimo. O elevador, como sempre, vai demorar para chegar e você, como sempre vai pensar nos três andares que levam três anos para subir. Você vai dar um sorriso. Por enquanto você é só um estagiário que sonha com esses três andares mas com muito mais coisas. Não se preocupe, você não é um aficcionado. O centro da cidade esta cheio, pessoas por todos os lados que vão esvaziar essas mesmas ruas em meia hora. É o tempo de todos chegarem à suas casas. As luzes brancas e saudosistas da rua XV já estarão acessas e isso vai lhe deixar feliz. É um longo caminho para atravessar todo o calçadão mas você não irá se importar também. Lembre-se que é sexta-feira e amanhã é seu dia de descanço. É hora do rush, e só quem pega ônibus às seis da tarde sabe o que isso significa. Você vai esperar três, quatro ônibus passarem para poder entrar em um. Ele vai vir cheio mas aquela quantidade de pessoa não vai fazer nada além de tornar seu fim de tarde mais aconchegante, mais aquecido e, por alguns pontos de ônibus, você vai esquecer que é inverno. No momento que você chegar ao seu destino, a leve garoa vai ter engrossado e você vai ter de se encolher no casaco, seu corpo vai ter calafrios e será necessário uma leve corrida até a padaria. Comprará cinco pães, um pouco de queijo e apresuntado, se ainda tiver, um saco de leite. Esta será sua janta. Chegando em casa vai lembrar da sensação aconchegante que sentiu dentro do ônibus, lá estará quente, iluminado com luz amarela e não aquela fluorescente dos ônibus. Vai preparar um sanduíche e comer em frente a televisão. Na cama irá pensar nos três andares que lhe faltam. Mas por enquanto falta desligar o computador e se preparar para ir embora. Corra, você esta atrasado.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Coisas que não devem ser feitas

Caso você não saiba esta chovendo. Um dia eu vi a divisa da chuva. De um lado chovia, do outro não. Durou pouco até a chuva tomar conta de tudo, mas eu estava lá, parado na janela, fazendo sagu de uva.
Hoje choveu pedra, caso você não saiba, e ao invés de sagu estou escrevendo. Devia estar fazendo um dos vários trabalhos de faculdade pendentes mas esta chovendo e como diz o ditado, "não faça trabalho enquanto chove".
Se a chuva, voltando para terra trás mesmo as coisas do ar, eu também tenho medo da chuva. Medo que ela traga aquilo que propositadamento foi deixado no ar e a ele pertence. Coisas que não foram ditas, que não foram feitas. Essas são as perigosas. Fuja delas!
Se você quer um exemplo de como as coisas não feitas tem um impacto grande, vou contar a história de um amigo meu, o Carlos. O Carlos é uma figura, gente boa como só ele. Nos seus dezenove anos de vida ele já fez de tudo. Estudou até terminar o segundo grau e começou uma faculdade com 17. Conseguiu faz pouco tempo um estágio bacana e isso é tudo que fez. Mas que figura esse Carlos.
Acontece que um dia desses um amigo dele passou num dos últimos vestibulares da história e foi comemorar em um puteiro. Convidou vários amigos e pagou para todos. Claro que só pagou a entrada, o resto ficava a cargo de cada um. Uma das características desse meu amigo que fez de tudo era ver a beleza na sua forma mais bruta, as vezes até onde não existia.
Mas naquela garota da vida, magrinha, loira e pálida, que destoava das outras por não ter formas exuberantes, era fácil ver que existia uma beleza em algum lugar escondido entre sua timidez e sua delicadeza. Quem visse aquela moça em um outro lugar falaria que ela tinha pudores, mas com apenas uma cinta-liga e uma calcinha mínima de renda, com os seios também mínimos a mostra, andando entre um monte de homens com suas ereções, ela não passava de uma puta qualquer.
E foi por ela que Carlos se encantou. Não o culpo. A garota era mesmo encantadora. Nós temos mesmo um gosto semelhante por mulher e se ele não tivesse grudado nela na hora que chegou, eu teria grudado nela.
Ele pagou uma dose de whisky vagabundo pelo preço de um de cem anos e foi o suficiente para fazer ela não sair de perto dele. Ele falou por dez minutos a cerca dele e de sua vida e foi o suficiente para ela se apaixonar por ele. Mas que sorte! Dizem que as garotas fáceis se apaixonam facilmente pelos seus clientes. E geralmente os clientes não são nenhum modelo de pessoa para se apaixonar. Exceto o Carlos. Aquele é uma figura, das raras.
Na terceira dose ele levou ela para o quarto. E não como uma prostituta mas como uma amante. Pois desde a segunda taça de champagne ele já amava ela também. E o que ele devia fazer ? Tratar ela como uma qualquer, fazer carícias, recebe-las, dar vazão ao seu lado animal e ejacular dentro daquela que amava ? Ele não podia fazer aquilo. Ela não merecia, nem ele. E está aqui as coisas que ficam de lado, as coisas que não são feitas e que ficam no ar onde elas pertencem.
Por mais impossível e clichê que pareça eles dormiram abraçados, de "conchinha". Fizeram amor enquanto dormiam e era aquilo que ambos precisavam.
A hora passou, o dinheiro acabou e foi hora das despedidas. Mas até quando ? Será que ele devia voltar como um cliente ou como um amigo, como um amante ? Será que valeria a pena os risco, o ciúme dela ser dele e de vários ao mesmo tempo, em curtos espaços de tempo ?
Esta era uma resposta que perdurou durante um tempo. Júlia, esse era o nome dela, anotou seu telefone em um papel, mas ele demorou para ligar. Perdera o sono, o apetite, a sanidade. Mas porque tudo aquilo ? Será que era pela luxúria, será que era desejo em seu estado mais carnal ? Ou era o fetiche, o sonho de dar uma vida mais respeitável para aquela que não teve chances e todas essas lenga-lengas de ajudar o próximo ?
No dia que ele ligou tinha chego a conclusão que era um misto dos dois. Marcaram um encontro fora da casa de shows. Vestida, ela parecia uma pessoa normal. Passaria facilmente despercebida entre a multidão. Conversaram durante horas, cada um falou de sua vida mais a fundo e em três horas de encontro, esse gratuíto, ficaram amigos, nada mais que isso. O desejo de ambos acabou. A pena que ele sentia dela se esvaiu. Não havia nada nela que desse pena. Era uma moça comum com uma profissão incomum.
Se conversam até hoje, são íntimos como amigo. Cogitaram algumas vezes terem relações mas não foram adiante. Essas coisas que ficam no ar, as que eu tenho medo (Carlos também tem, ele me contou) nem sempre são ruins. Mas enquanto elas continuam no ar. Que essa maldita chuva de granizo que parece que vai destelhar a casa não as traga de volta.

De Kurt à Avril (rascunho)

Já passei da idade de ouvir Avril Lavigne e colocar brinco. Tenho 25, quase 26 anos. No entanto estou com um brinco na orelha, um pequeno alargador esta a caminho e hoje me surpreendi ouvindo Avril pela internet. A Barbara Lovelock tem razão, quinze anos passaram e nos estamos ficando uns puta velhos. E ela tem a vantagem de ser mais nova. E esse negócio de envelhecer me assusta. Eu tenho só 25, quase 26 anos mais tenho medo de deixar a adolescência. Ou melhor, talvez eu esteja enganado, estou chegando na adolescência tarde demais. Fui criança por muito tempo, não aproveitei os namoricos, os excessos, os erros da idade teen. Sou um jovem incompleto, inacabado. Não aprendi o que devia ter aprendido e agora tenho de me virar.
Talvez por isso eu esteja estúpido, perdido na vida, sem um norte certo, que fica sacaneando as pessoas por não saber fazer melhor. Eu nunca fui o popular, o nerd, o atleta, o músico, o artista. Eu não sei o que fui e isso dificulta saber quem eu sou. Não sou!
E isso pode ter suas vantagens. Não que eu saiba quais. Talvez eu seja uma página a ser escrita. Posso colocar o que tem de melhor, ser criativo e generoso comigo. Posso ser o Picasso da minha vida. Sou um puta velho ainda jovem e isso, por incrível que pareça, pode ser uma coisa boa.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Kurt e minhas Lembranças

Coloquei para ouvir o acústico do Nirvana na Internet. O CD eu perdi a algum tempo atrás, mas com a Internet nem faz mais falta. Você deve estar pensando que já que eu estou ouvindo Nirvana vou escrever algo sobre morte. Mas não. Nem sei se vou escrever algo. Me perdi um pouco nas lembranças.

Eu costumava ouvir nirvana na adolescência e tenho boas lembranças da adolescência. Lembro de um churrasco em que eu ainda comia carne e bebia. Uma pena alguém ter esquecido a carne no freezer e nos comemos uma carne meio congelada. Mas ouvimos muito o Nevermind e eu até acho que dancei um pouco feito um grunge louco quando estava bêbado.
Semana passada eu fui a um churrasco com uma turma que nem é a minha. Um pessoal super legal, animados, mas que teimavam em ouvir esse sertanejo pop atual ou funk. Que falta você faz, Kurt.

Mas quando penso em Nirvana também lembro de uma menina da sétima série. Eu era um cara fechado e tímido. Era feliz, mas fechado e tímido. E quando você é um adolescente, cheio de espinhas, feio, fechado e tímido, você sempre encontra alguém na sua classe para ser seu modelo, seu exemplo. E tinha essa menina super descolada que entendia tudo de música. Tudo bem, talvez ela só conhecesse um pouco de música, mas para um rapaz como eu, que só conhecia The Doors e umas porcarias de MTV, aquilo era o máximo. E essa menina vivia indo para o colégio com uma ou outra camisa do Nirvana, falava do quanto o Kurt fazia falta na vida dela e do quanto sua carta de suicídio significava para ela. Talvez além de fechado e tímido eu fosse um pouco tapado porque aquela menina significava um monte para mim, com suas camisas do Nirvana e uma carta de suicídio na mão.

Essa menina me lembra de outra menina que não conheci, talvez porque não existiu. É uma personagem de um livro do Hornby que era louca pelo Kurt Cobain. Tem um guri no livro que idolatra ela (como eu idolatrava minha amiga) e que tenta esconder ao máximo a morte do Kurt. Só que ele não consegue, ela já sabia de tudo e saiu quebrando a vidraça de uma loja de CD´s que estava, aparentemente, usando da imagem dele para se promover.

O que me chateia é que na época dessas lembranças eu lembro que se falava em quatro, cinco anos sem Kurt Cobain. Hoje fazem quinze que ele se matou. Quem morreu também foram minhas lembranças. Os amigos de uma época que me marcou mais pela falta do que pelo excesso delas. Só restam algumas imagens perdidas em uma trilha sonora grunge.

terça-feira, 31 de março de 2009

Apenas amigos

Ela estava parada na grade do mezanino, vendo a banda que tocava lá em baixo só para ela. Uma garrafa de água na mão, milhões de pensamentos na mente e só um sentimento: o de pura alegria.
Ele vinha atravessando o salão, uma lata de coca em cada mão. Quando chegou perto parou um pouco e pensou se aquilo estava realmente acontecendo. Fazia oque ? Dois anos ? Mas valeu esperar. Sorriu um sorriso delicado e foi em sua direção. Abraçou ela pelas costas, sua barba rala roçando em seu pescoço e o sentimento de paz enquanto ela apertava seu braço e virava para beijar seus lábios.
A banda começou a tocar uma do Pink Floyd. Os namorados na pista, aqueles que so estavam por aquela noite, dançavam e cantavam com entusiasmo. Os dois lá em cima, só mexiam os corpos, os olhos fechado, a mente em outro lugar. Em um lugar onde só estavam os dois. Onde os dois eram só o que havia.
Nesses dois anos ele não esperava de verdade que aquilo iria acontecer. Nem mesmo escrevia a respeito em seu blog, ou conversava com seus amigos. Por isso muitos deles estranharam quando no canto da mesa os dois deram o primeiro beijo, delicado, curto. Alguns pensaram em dizer alguma coisa, mas estavam atônitos. Não esperavam aquilo dos dois. Nem eles esperavam. Gentis, todos deixaram a mesa aos poucos, não que importasse. Os dois estavam totalmente perdidos neles mesmos. Da mesa foram para o mezanino e de lá so se desgrudavam para ir pegar algo para beber (ele) ou para retocar a maquiagem (ela).
Quando aquela noite acabou, ela pensava, com a cabeça deitada no travesseiro, tentando dar um significado para aquilo, tentar rever como tudo aquilo aconteceu. Ele, sentado na sua poltrona favorita pensava em como seria o dia seguinte. Deveria ligar ? Ou deveria esperar segunda feira e esperar a reação dela? Teria sido um equívoco ? Ele estava assustado. Ela, no entanto, não se preocupava com o dia seguinte. Queria curtir o resto daquela sensação de ecstase, aquela alegria maior que ela, como ele poderia estar aqui comigo...

segunda-feira, 30 de março de 2009

Ilha da Magia

Carlos estava miserável, não sabia o que fazer. Como fugir daquele dia ? Não era da solidão que lhe apertava o peito (com essa já se acostumara), nem um compromisso angustiante nem nada que pudesse simplesmente jogar para outro dia ou cancelar por completo. Ele queria fugir daquele dia, daquele sol de inverno, daquele frio de inverno e, principalmente, daquele céu azul sem nuvens típico do maldito inferno.
Na infância aquele tipo de dia já lhe massacrava e, para fugir, ele se trancava no quarto e se fixava na tela do computador durante horas até que a noite se apoderava do céu e seu peito ardia menos, com mais calma.
Eram onze horas da manhã. O dia estava começando. Os dias de fulga ficaram, ou deveriam ter ficado, para trás. Uma tarde trancado em sua kitchinet, com a coberta cobrindo a janela para não deixar nem uma luz do sol entrar, passando frio e sem nem mesmo um computador para se distrair, com certeza era uma receita para a desgraça. E desde aquele dia em que deixara seu lar, jurara para si mesmo que não pensaria mas nequele tipo de coisa, pois, desta vez, não haveria quem o impedisse.
Carlos deixou sua casa, sua família, boa parte de sua vida, e veio para a ilha da magia. Estava cansado de magoar os que ele amava, de magoar e enganar a si mesmo. Então, largou o emprego, trancou a faculdade e, com seu último salário, veio para Florianópolis se "esconder". O sofrimento da família foi terrível. Eles achavam, ou melhor, eles tem certeza, de que ele seria melhor cuidado em Curitiba, junto deles. Mas Carlos estava irredutível. Nada o faria mudar de idéia. Ver seus pais e seu irmão chorarem por sua causa mais uma vez seria demais para ele. Ele poderia aguentar tudo: solidão, ansiedade, angústia, mas aquele olhar de você-nos-magoou-novamente seria demais.
Florianópolis foi a segunda opção. A primeira foi a morte, mas ele era um covarde, do que viria a se orgulhar quando tudo passasse um dia. Porque ele tinha plena consciência de que passaria.
Em sua nova casa não havia nenhum atrativo. Sem televisão (sorte ?), sem seus livros que um dia iria buscar, sem nem mesmo uma cama, somente um colchão velho jogado no chão. Mas ele não se importava. passava o tempo que tinha procurando emprego em qualquer lugar e quando tudo fechava ia para a Beira Mar andar, sentir o cheiro do mar e deixar que a brisa agradável da baia secassem suas lágrimas. Como podia alguém ser tão preso as suas origens ? Faziam dois meses já, e as lágrima continuavam a brotar de sua face com as menores das lembranças. Talvez uma dose de alguma coisa ajudasse, mas o medo de se meter em confusão em um lugar tão distante de casa o impedia. Mas sua casa estava ali, a algumas quadras, como poderia estar distante ?

O tempo passou. Carlos aprendeu coisas que somente a distância da vida permitem. Conseguiu um emprego, que comemorou tomando uma taça de vinho branco com pizza. Não era nada especial: um emprego de seis horas em uma loja no centro, perto de sua casa (?) e com um salário razoável. Durou no emprego seis meses. Foi o suficiente. Depois daquela última noite percebeu o que realmente lhe era importante.
Uma senhora entrou na loja com a neta ( devia ter oque ? vinte, vinte dois anos ?) para comprar um livro para dar de presente. Tinha tantos, mas Carlos se viu escolhendo Cem Anos de Solidão. Era um dos primeiros livros "cabeça" que ele havia lido. Sua família inteira havia lido. Até seu pai, mesmo não tendo gostado, leu inteiro, com letra pequena e tudo.
Carlos sentia falta daquilo, desse negócio de família. Florianópolis era ótimo, morar lá, sozinho, tinha seus prós e contras. O pensamento da morte tinha ficado para trás mas o sentimento de perda da família, daquilo que sempre lhe foi uma identidade, continuava.
Despediu-se da senhora com a neta, foi até a gerente e anunciou: estou indo para casa.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Aulas de Ginástica

Era um dia chuvoso, não o ideal para usar roupas novas, mas ele iria encontra-la. Ela não sabia disso. Atravessou a praça do Japão, evitando as poças que estragariam seu sapato novo de camurça. Sua camisa de setim preta estava molhada na manga esquerda onde o guarda chuva estragado não conseguia proteger.
O ônibus demorou um pouco, não mais que o habitual e veio cheio, como sempre. Encostado em uma das sanfonas começou a pensar nela. Seu nome era Mariana e eles se conheceram ainda no colégio. Estudavam em salas diferentes mas a ginástica era no mesmo horário. Como ambos tinham uma certa aversão (terror ?) a qualquer atividade física, conseguiam, com certa dificuldade, diverso atestados dizendo das impossibilidades de praticarem esporte naquele dia. Justamente no dia da ginástica. Ficavam sentados no canto da quadra, assistindo os outros jogarem algum esporte. Eventualmente Marcos levava seu discman e um dia ela pediu para ouvir junto. Foi assim que se falaram pela primeira vez.
Ela também gostava de Pink Floyd, que era o que eles ouviram aquele dia e desde então ele começou a trazer diversos CD´s da banda para agradar. E agradou. A antes tão odiada aula de ginástica passou a ser aguardada com euforia pelos dois. Claro que poderiam conversar nos intervalos mas de certa forma estragaria o momento mágico daquelas duas horas que passavam sozinhos.
O professor de educação física, que não era nenhum idiota, percebeu logo de começo que aqueles atestados não eram verdadeiros e deixou até mesmo de exigi-los. Pensava em obrigá-los a fazer os exercício como todos os outros mas a diretora pediu que ele não o fizesse. Aqueles dois eram amigos agora e ela sabia o quanto aquilo era importante para eles, afinal, eram os dois "solitários" do colégio. Tinham colegas, não amigos, e juntavam-se ao bando única e exclusivamente para parecerem normais.
E assim, sem se preocuparem com as aulas e com o aval de diretora para conversarem durante as duas horas de aula, deu-se início uma grande amizade. No começo a canversa tinha um teor de ódio, amargura talvez. Falavam do quando aquilo era ridículo, aquele colégio e tudo mais. De como se sentiam acuados pelos colegas, e professores, e matérias, e trabalhos. Com o tempo passaram a se focar no que gostavam e o clima amenisou. Falavam de bandas, traziam sempre um CD de uma banda diferente para mostrar para o outro.
Aquela amizade começou a mudar a visão deles de colégio, da vida, das pessoas. Cada um começou a tornar um colega preferido em amigo e aos poucos passavam a, de fato, pertencer ao grupo. A diretora ficou orgulhosa.
O ano acabou e no ano seguinte, segundo ano do ensino médio, eles conseguiram se matricular na mesma sala. As coisa deslancharam de aí em diante. Era como uma flor desabrochando. De intrusos, passaram a ser líderes dos grupinhos, ouso até dizer "populares". Como as coisas estavam melhores para ele, o professor de ginástica passou a exigir a participação dos dois nas aulas. Eles nem se importavam. Tinham tempo de sobra juntos, durante as aulas e até mesmo depois.
Foi um pouco antes das férias de julho que o pai de mariana foi transferido. É de se imaginar o choro dela e o sofrimento calado dele. Ela pensou em ficar mas sua mãe, um tanto possessiva nem quis ouvir a respeito. Os dois estavam miseráveis. No dia da partida ele foi até o aeroporto. Tinha ido até lá algumas vezes mas nunca com os olhos marejados. Desta vez não seria um passeio agradável. Uma multidão de gente havia ido se despedir da família. Marcos até levou uns amigos próximos dos dois com ele.
Foi só um pouco antes do embarque que os dois trocaram o primeiro beijo. Ela levou ele até um canto, lhe entregou uma carta e o beijo veio naturalmente, com um atraso de quase um ano. Ambos choravam e as lágrimas, ligeiramente salgada, deram um toque especial à despedida.
Por um tempo ainda se conversavam por email. Telefone raramente. Ambos cairam na antiga clausura, odiando as aulas, as amizades. Mas durou pouco. Nenhum deles queria voltar ao que foram um dia.
No sexto mês separados já não conversavam tanto. Cada um tinha feito novas amizades e estavam tocando a vida de algum jeito. Ela começou a namorar um cara, o que causou um desespero em Marcos que durou semanas e, a partir de então, praticamente pararam de se falar.
Neste dia chuvoso de hoje Marcos ia ao aeroporto mais uma vez. Dois dias antes haviam ligado para sua casa, era o pai de Mariana. Sua voz estava rouca, choro engasgado, e ele falou, de forma bastante cerimoniosa, da desgraça que se abatera em sua vida. Mariana havia morrido de meningite, dessas bem graves. Não houve tempo para despedidas. O corpo chegaria no aeroporto em dois dias e seria enterrado em Curitiba, onde morava o resto da família e para onde eles voltariam na semana que vem, devido a uma nova transferência.
Foi um choque terrível e Marcos colocou todo seu sofrimento em forma de rancor contra Mariana. Porque ela não havia falado da transferência ? Porque não ficou quando seus pais mudaram ? Talvez se tivesse sido mais forte as coisas seriam diferentes e eles teriam ficado juntos.
O pai de Mariana fazia questão da presença de Marcos no aeroporto e ele, mesmo sem carona pegou um ônibus em um dia chuvoso para ir até lá. Chegando ao aeroporto o Seu João lhe entregou um embrulho fechado onde haviam dúzias de escritos de Mariana para Marcos. Aquela foi a gota d´agua. Ele sentou no chão para não cair. João se abaixou e abraçou o rapaz e os dois choraram juntos. Foi um choro sofrido, que durou um bom tempo. Depois se recomporam e se sentiram estranhamente mais calmos.
Desta vez ele não pode fazer nada mas sabia que um dia a havia salvo, assim como ela um dia o salvou. O velório, o enterro foi sofrido e no final Marcos voltou, debaixo de um dia nebuloso mas sem chuva, para os escritos de sua grande amiga.

terça-feira, 17 de março de 2009

A Última Noite

Fazia frio e a lua, quase cheia, refletia em seus olhos marejados e nas eventuais lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Aquele era um sentimento novo. Nunca foi de chorar exceto quando criança e nunca de sofrimento. Aquela sensação lhe arrebatava. Como se os olhos, essas eternas mentes pensantes, soubessem o que estava prestes a aocontecer e precisassem de alguma forma agir.
Tomou mais um trago de Velho barreiro disfarçado em garrafa de água e foi para a beira do terraço em que estava. Então é assim que vai acontecer ? Não, não podia ser assim. Tinha de se despedir de seu eterno amigo, aquele que nunca cobrou explicações, sempre aceitou tudo sem interferência, o papel em branco. Tirou de sua mochila um pequeno bloco de notas e pensou no que escrever. Porque agora sentia urgência de escrever em forma de poema, sendo que nunca foi exatamente um apreciador de poemas ? Nunca conseguiu entende-los em suas métricas e rimas.
Decidiu que apenas prosa servia. A essa altura uma nuvem carregada cobria a lua. Sentou-se em uma cadeira e começou a escrever. As idéias fluiam, a caneta não parava. Em dez minutos terminava sua carta de despedida. As lágrimas agora corriam fácil e alguns dos clientes daquele café olhavam com curiosidade (pena ?) para aquele rapaz totalmente perdido em seu mundo.
Ele tirou uma pequena caixa que havia comprado na farmácia e, com toda tranquilidade do mundo, para não se cortar, tirou uma lámina da caixinha. Preparou um pequeno "cabo" de guardanapo para proteger seus dedos da lâmina e começou a cortar os braços, principalmente o pulso. As pessoas a sua volta levantavam, com medo e se afastavam. Ele largou a lâmina e com a mão boa deu mais uma tragada no cigarro, manchando-o de sangue. Depois de um tempo, quando chegou um segurança do shopping as pessoas começaram a chegar mais perto. Alguém tirou a camisa para fazer um torniquete e proteger seu braço, mas ele se levantou antes e foi em direção da mureta do terraço. Uma perna já estava do lado de fora quando um segurança franzino puxou-o para dentro. O desespero era total. Mulheres choravam e homens colocavam a mão na cabeça sem saber o que fazer. Uma leva de seguranças chegaram para ajudar e na briga contra o suicída, uma mesa, aquela mesma em que ele sentava, foi derrubada. Seu escrito final voou alguns metros e ficou perdido naquela bagunça para a eternidade.
A âmbulancia chegou quando o homem estava mais calmo, meio desmaiado, sem força para agir. Em vinte minutos estavam no hospital. Tudo ficaria bem.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Insanity, please go away!

I got a glimpsy of you today. It´s been a while. I could almost feel you touching me. If i concentrade hard i can feel you right now. Do you remenber when we spend all those years together ? You made me miserable. You still do sometimes. Like today. It may sound umbeliveble but i miss you sometimes. Don´t get me wrong, it was amazing when you left, but you marked me. I am what I am because of you, and I hate you for that. But i still miss you sometimes and you are welcomed to visit, like you did six months ago and are doing now. Just don´t stay too long. Not this time. Someday things will get complicated and I will have to scape in the worst way. So please don´t stay long. Not now, not ever.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Lembranças de meu Irmão

Eu sempre fui meio ruim de memória. Leio livros e às vezes preciso voltar alguns capítulos para ver do que eles se tratavam para não perder algo importante. E coisas corriqueiras que me pedem para fazer eu sempre esqueço. No entanto lembro com grande clareza o dia da morte do meu irmão. Ele morava no Chile na época e nós não nos víamos a anos.
Não tinha dormido muito bem na noite anterior porque lembrei que estava com um CD de um programa bem legal de computador que um amigo tinha me emprestado a alguns meses e que eu tinha esquecido jogado no armário. Fiquei boa parte da noite querendo instalá-lo e perdi o sono. Logo que cheguei do colégio fui dar uma olhada. Estávamos todos no quarto conversando e eu no computador. Foi quando o telefone tocou e era uma mulher da embaixada do Chile.
Conversava com meu irmão com certa freqüência naquela época pelo telefone. Ele dizia que tinha um jeito de ligar que não cobrava a tarifa, então dava para ficar um bom tempo conversando sem gastar nada. Ele ligava tanto que as vezes incomodava e eu dava um jeito de desligar logo. Acho que ele me achava um tonto e até mesmo ficava sentido comigo. Mas os assuntos nunca davam uma conversa legal. Ele falava muito de futebol e, na época, eu não entendia nada disso. Lembro que um dia ele me perguntou de um gol de um tal jogador chileno que eu nunca tinha ouvido falar. Lembro que ele ficou louco porque o tal jogador era um dos eleitos a melhor do mundo!
Nossa relação foi sempre meio conturbada. Ele era bem mais velho que eu e muito das nossas vidas nós nem mormos juntos. Em uma temporada que ele passou lá em casa nos ficamos um bom tempo sem nos falar. Nem lembro porque. Mas teve os bons momentos também. Como os dias em que eu achava o vídeo game que minha mãe escondia para eu estudar e nós ficávamos horas jogando. Ou quando ele chegava de manhã de suas viagens ao Paraguai trazendo muamba. Eu e meu irmão do meio ficávamos horas vendo as coisas enquanto o mais velho tentava expulsar a gente para ele poder dormir. Lembro bem do cheiro do quarto dele, uma mistura de cigarros com umidade.
Por um tempo eu achava que não gostava tanto dele como deveria, ou pelo menos o tanto quanto o resto da família. No final daquela temporada ele ficou uns meses trabalhando na Argentina e quando voltou um dei um abraço tão grande nele que minha mãe disse que foi a melhor recepção que ele teve de todos nós. Aquilo foi um conforto para mim.
Fui eu quem atendi o telefone naquele dia. Quando a moça falou que era da Embaixada Chilena só pensava no que ele tinha feito de errado para ser preso. Acho que era algo bem justo e tranqüilizador de se pensar. Passei o telefone para minha mãe e ela ficou só ouvindo por um tempo. Suas primeira palavras foram: “E como nós fazemos com o corpo ?”. Era algo que eu, bem La dentro, sabia que ela iria falar. Meu irmão que estava deitado na cama dele escondeu o rosto no travesseiro para chorar. Eu fiquei ouvindo sem ouvir o que minha mãe dizia e, sabe-se lá porque, saí do quarto. Quando passei pela porta do meu quarto vi que nossa gata de estimação, aquela mesmo que ninguém gostava e que logo nós daríamos, estava no peitoral da janela, quase caindo. Tirei ela de lá e fui para a cozinha tomar água. Por algum motivo peguei um copo par minha mãe. Quando cheguei ao quarto ela já tinha desligado o telefone e estava consolando meu irmão, agora o único. Ela não chorava.
Eu quis demonstrar que eu era forte naquele dia, talvez fosse mesmo, e além de estudar para a prova de química do dia seguinte ainda fui para a aula de inglês. Mas fiquei absorto de tudo aquilo. Estava mais distante de tudo do que de costume. A noite, quando cheguei em casa, ficamos um bom tempo na sala, todos em silêncio. De vez em quando alguém falava algo mas parecia tudo tão surreal que nem virava uma conversa.
As causas de sua morte estão até hoje meio conturbadas para todos nós. A mulher da Embaixada havia dito que ele brincava com algumas crianças no teto de um ginásio e, quando o teto cedeu sob ele, ele caiu de uma altura de quinze metros. Ficou o fim de semana internado no hospital mas acabou morrendo. Aqueles detalhes me deixaram mais triste que a morte em si. Fiquei imaginando ele sofrendo sozinho em uma UTI, tão distante daqueles que o amavam, depois de ter ficado brincando com crianças que deveriam ser eu e meu outro irmão.
Durante a semana que se passou, antes que o corpo chegasse do Chile, nos todos seguimos uma rotina semelhante. Todos faziam o que faziam de costume e, quando chegava a noite no reuníamos na mesa da sala para sofrermos em silêncio. O corpo chegou em uma sexta feira. Passamos horas no setor de cargas do aeroporto esperando toda aquela papelada ser liberada para levarmos o corpo. Agora meu irmão não passava de uma carga.
O funeral foi triste e curto. Eu pude chorar bastante. Ia de dez em dez minutos chorar no banheiro, longe do olhar dos outros e voltava com a cara inchada e os olhos vermelhos. Depois veio o enterro, a tal da despedida final e tinha tudo acabado. Naquele mesmo dia alguns amigos me ligaram para andar de kart. Eu já não sofria tanto. É impressionante como após o enterro o sofrimento diminui e começa uma parte mais melancólica, as recordações e tudo mais. Não fui andar de Kart. Junto com o corpo a embaixada havia mandado uma caixa com alguns de seus pertences e estávamos todos ansiosos para abrir. Lembro que meu irmão, o único que me restava agora, tinha a esperança de que tudo aquilo tivesse sido um erro, que nosso irmão estava vivo e que voltávamos do enterro de outra pessoa. Quando abrimos a caixa, suas esperanças acabaram. Tinham algumas fotos que nós nunca tínhamos visto. Umas roupas e algumas fitas gravadas com músicas Chilenas. Um livro de inglês que eu guardo até hoje e alguns documentos. A vida de meu irmão se resumia no que estava naquela caixa. Era só o que restava, fora as lembranças.
No dia seguinte fomos a um restaurante. Servia comida mineira e tinha um bosque bem legal, com alguns animais e um lago. O dia estava extremamente ensolarado, um sol de inverno. Sempre pensei que aquele dia sim foi a dia da despedida de meu irmão. Um dia de céu claro, o primeiro que eu me dei conta de que ela não estava mais ali. De que nunca mais estaria.