quarta-feira, 21 de outubro de 2009

James, o Sapo

James tinha um rosto estranhamente redondo, raspava a cabeça e tinha uma boca alongada horizontalmente que mais parecia um sapo. James era um Sapo. Ganhou o apelido quando levou para sala de aula uma foto. A foto em questão mostrava James soprando três velas na sua festa de três anos. No bolo um desenho de um sapo estava voltado para a câmera e, para um desavisado, pareceria que o desenho havia sido feito com base em uma foto de James. Rodrigo viu a foto e logo gritou: “Olha um sapo soprando outro”. James tinha cinco anos e desde então se tornou o Sapo.

O apelido parecia não corresponder somente a sua imagem, mas também a personalidade. Desde os quatro anos passava seu tempo livre em um riacho ao Norte da cidade, com calças dobradas até o joelho e os pés descalços pisando em pedras alisadas pelo correr das águas. Também gostava de sentar no toco de uma árvore grande e morta que havia sido cortada no ano em que ele nasceu e feita de banco para seu pai fumar cachimbo no fim da tarde. Desde a morte de seu pai o Sapo havia tomado aquele “banco” para ele.

Era comum Rodrigo passar na sexta feira e tirar James do banco para ir jogar bola na cancha de areia do bairro. Apesar de ter dado o apelido que seguiria James por toda sua vida, os dois acabaram se tornando amigos.

Era uma amizade muito peculiar. O gênio de ambos não poderia ser mais diferente. Enquanto o Sapo tentava caçar seus amigos girinos no fundo do riacho, Rodrigo se entretinha em grupos grandes, jogando bola, correndo de pega e outras brincadeiras de crianças comuns na época. Os dois sentavam lado a lado na sala de aula, mas no resto da tarde pouco se viam. Exceto nas sextas em que James tinha permissão de jogar bola

Digo ter permissão pois, desde a morte de seu pai, Carla, sua mãe, tinha um zelo especial e um pouco agressivo para com James. E contraditório. Deixava o rapaz sair sozinho por toda a cidade mas, quando era para sair com outras crianças, só nas sextas feiras. Acreditava que ter um contato muito intenso com outras pessoa poderia ser prejudicial, pois tiraria seu filho aos pouco de perto dela, assim como seu marido foi a deixando aos poucos por uma cama de hospital. Tal zelo foi determinante no caráter de James.

***

De pé, em frente a sua casa, James olha para onde passou toda sua infância e princípio de adolescência. Ao seu pé esta uma mala, a mesma que ele levou cinco anos antes para o internato onde foi estudar. Sua mãe deve estar lá dentro, preparando o almoço com Alice, a empregada de sempre, enquanto ambas esperam sua chegada. No toco de árvore não há ninguém sentado. Nesses cinco anos, pensa James, ninguém deve ter sentado ali. Permanecera vazio a sua espera.

Foi muito difícil para o Sapo deixar sua mãe, sua casa, a Alice e todo aquele lugar para partir para o desconhecido. Tinha dezesseis anos quando entrou no ônibus que o levaria à capital. Foi sozinho. O plano era ter ido com Rodrigo, mas esse, de tanto passar o tempo com seus outros amigos, acabou reprovando um ano e ficou para trás. O Sapo nunca o havia perdoado por isso, por ter de entrar naquele ônibus sozinho, naquela tarde nublada, rumo à capital. Agora ninguém sabe de Rodrigo. Foi para Porto Alegre um ano depois de James e por lá ficou até deixar de mandar notícias para a família, deixando todos em um estado de espera desiludida que dizem ter matado sua mãe. James não o perdoava por isso também.

Enquanto espera para entrar em casa, Sapo lembra sua infância, mais particularmente sua primeira briga. Estava no seu toco, em uma sexta feira, quando Rodrigo o levou para jogar bola. Sapo tem até hoje a certeza de que não havia cometido aquele pênalti, mas só Rodrigo acreditou. Ouviu-se alguém gritar que iria ver que cor de sangue tem um sapo. Acabou que era vermelho mesmo. Rodrigo interveio à favor de James e mostrou que seu sangue era vermelho também, assim como o dos outros colegas que entraram na briga.

Foi a última partida de futebol de James. Sua mãe o proibiu de sair na rua por meses e de jogar bola para sempre. A amizade com Rodrigo cresceu nesses meses de internamento. Passou a freqüentar a casa do amigo quase diariamente e ficou íntimo de Dona Carla que o tratava com dureza, mas carinho. Dona Carla nunca entendeu o sumiço de Rodrigo, mas aparentemente o perdoou.

***

Encontrou sua mãe na cozinha como imaginava. A reação dela foi de uma surpresa tamanha que não parecia que ela esperava a chegada do filho a vinte dias, quando esse desistiu da faculdade e foi para casa. Se abraçaram forte e ensaiaram uma pequena dança que era costume dos dois desde sempre. Mas somente Alice chorou. Chorou profundamente e quando abraçou James, a quem chamava de moleque, acabou molhando a camisa do outro com suas lágrimas.

Todos da pequena cidade sabiam que James iria largar a faculdade eventualmente. Sabiam que ele não era feito para aquilo. Somente sua mãe mantinha a ilusão de ter um filho capaz de ser inteligente como o pai. Acreditava tanto que fez uma força descomunal para viver todo aquele tempo longe do filho. Foi Alice que convenceu Carla de que o melhor era ela dar um pouco de liberdade para o filho. Quando este mandou a carta dizendo que havia largado os estudos e dentro de vinte dias estaria em casa ela se sentiu traída. Teve raiva, chorou, teve discussões com alguns do bairro, mas a idéia de ter o filho de volta em casa a confortou. Secou as lágrimas, fez as pazes com os que havia brigado e finalmente admitiu que seu filho era incapaz de se formar.

Já o Sapo sempre soube. Chegou a uma faculdade devido à influência de um dos diretores, que havia estudado e dividido quarto com seu pai naquela mesma faculdade. Levou uma semana para entender que tinha que trocar de sala de acordo com a aula e só foi descobrir que podia emprestar livros na biblioteca outras duas depois. Tudo teria sido mais fácil se Rodrigo estivesse ali. Mesmo tendo repetido de ano, Rodrigo era inteligente, indisciplinado mas inteligente. Seria um companheiro perfeito para a faculdade. James também nunca o havia perdoado por não estar lá.

A gota d água para James largar a faculdade foi quando teve de fazer as seis matérias obrigatórias daquele semestre e mais três que estavam atrasadas. Com isso não teria o prazer de nadar nos fins de tarde nem de ir ao cinema nos fins de semana.

Havia uma piscina no terreno da faculdade. Apesar de ser um sapo, James não sabia nadar muito bem e se contentava em passar horas na parte rasa. Gostava de ver como a mão ficava enrugada e um pouco arroxeada depois das horas de imersão. Nas sextas feiras, como estava proibido de jogar futebol, ia ao cinema e lá ficava até às seis quando começava a escurecer. Tinha medo de andar nas ruas da capital no escuro.

No seu último dia no dormitório da faculdade não teve de fazer muitas despedidas. De amigos só tinha um professor que tinha o péssimo hábito de não ver a realidade, de achar que todos eram capazes de tudo, só lhes faltava dedicação, e o faxineiro do andar do seu quarto. O faxineiro tinha problemas com a bebida e sempre ficava no quarto de James bebericando seu conhaque direto da garrafa. James nunca soube que aquilo era proibido em todo o dormitório. Talvez nunca tenha percebido que aquilo era álcool.

Feitas as despedidas foi até o terminal de ônibus de Florianóplois e partiu para casa.

***

Completava um mês que James havia voltado a sua casa. Nas duas primeiras semanas quase não saiu. Passava todo o dia ouvindo as histórias da mãe e da Alice. As duas sempre foram amigas, mas na ausência de James se tornaram carne e osso. Logo que ele foi à capital, o marido de Alice morreu de infarto. Como não tinha filhos, foi morar na casa de Dona Carla, no quarto que antes era de James. Os laços de trabalho acabaram e as duas viveram como se ambas fossem donas da casa.

Quando começou a sair pela cidade, matava saudades dos passeios de antes. Voltou a freqüentar o riacho, mas por menos tempo que a piscina, pois fazia um frio brutal e não demorava para as mãos ficarem arroxeadas. Sentava-se também no toco de árvore e lá ficava por um bom tempo. Certa vez passou uma pessoa de outras bandas e, devido ao olhar compenetrado do Sapo, teve impressão de que estava diante da pessoa mais inteligente da cidade, que passava o tempo perdido em pensamentos construtivos.

Nas noites os três sentavam diante do forno à lenha e lá ficavam até o sono chegar. Como as mulheres trabalhavam duro na limpeza da casa, esse não demorava. James permanecia diante do forno. Antes de dormir ia até a porta do quarto da mãe e ao seu antigo para ver se todos respiravam. Depois ia para sala que havia se tornado seu novo quarto.

***

Rodrigo voltou mudado. Tinha a barba crescida, os cabelos também. Era alto, estava com a pele muito branca, mas parecia saudável. Uma vizinha de Rodrigo contou a Dona Carla que ouve momentos de ódio e de pura comoção quando este entrou em casa. Foi recepcionado com uma frieza odiosa que durou pouco, logo seu pai o abraçou e chorou de tal forma que levou as lágrimas todos que assistiam. Rodrigo ficou sabendo da morte da mãe. Sua reação pareceu de indiferença mas logo caiu em pranto, aos pés do pai.

Não contou muito do que havia feito naqueles últimos anos. O que contou parecia mentira ou fantasia. Passara um bom tempo em Curitiba, descarregando e carregando caminhões, fazendo outros bicos e vivendo com uma moça e com o filho dela. Quando perguntado do porque de seu sumiço calou-se e seus olhos ficaram perdidos no espaço por um longo momento.

A vida na cidade naquela época resplandecia. O calor estava voltando, as pessoas se reuniam nas ruas para conversar, formavam rodas de chimarrão. James não saía de casa a um bom tempo. Desde a chegada de Rodrigo, este tentava visitar James. Sempre sem sucesso. Dona Carla e Alice tentavam convencer o filho a perdoá-lo mas era em vão. O Sapo permanecia em sua clausura até a noite com medo de encontrar Rodrigo nas ruas e só saia depois que escurecia para mergulhar no riacho.

***

Certa noite Rodrigo foi à seu encontro no riacho. A princípio a reação de James foi das piores, mas acabaram conversando e fazendo as pazes. Os dias que precederam o encontro foram alegres para os dois. Rodrigo contava de suas aventuras em Curitiba, falava sem parar. Sapo se contentava em ouvir e imaginar como seria ter tido aquela vida. Mas nenhuma palavra do internato.

Rodrigo freqüentava a casa de Dona Carla quase que diariamente. Chegava cedo, saia para um passeio com James, jogava bola enquanto Sapo assistia e depois iam se banhar no riacho. Este era freqüentado por outras pessoas, algumas moças inclusive. Rodrigo tinha facilidade com elas.

Foi nessa época em que James conheceu a amizade com alguém que não fosse Rodrigo: uma moça cuja reputação e beleza eram duvidosas. Com ela também conheceu o sexo. Estavam os três sentados na beira do riacho, era tarde de domingo e chovia um pouco, ninguém mais se encontrava por lá. Rodrigo disse que ia nadar em um ponto mais baixo e deixou Sapo e a moça sozinhos.

O nome dela era Vitória, mas todos a chamavam de Vi, menos James que não se sentia à vontade. Com a desculpa de que fazia frio ela se chegou a James e o abraçou. Pediu para ser abraçada. Colocou sua mão no peito branco e sem formas de James e foi descendo. Rodrigo voltou meia hora depois e encontrou somente James deitado com ar de perplexidade e satisfação no rosto.

***

A alegria de todos acabou em uma sexta feira. A cidade em questão era muito pequena e todos conheciam todos. Era segura, nunca havia tido notícias de brigas ou roubos e a única coisa parecida ligada a polícia era na intendência municipal onde bêbados passavam as noites e era cuidada por três pessoas apenas. Por isso todos estranharam quando apareceu por lá uma viatura da polícia vindo direto da capital. Dois policiais tinham ordem de prender Rodrigo de Souza sobre acusação de assassinato.

Quatro anos antes, quando Rodrigo acabava de chegar ao internato, havia se metido em uma briga por causa de mulher. Ela dizia que seu namorado tentava estuprá-la e Rodrigo interveio a favor dela. O namorado acabou morte e Rodrigo fugiu assustado.

Naquele dia chovia forte e Rodrigo almoçava na casa de Dona Carla. Os policiais bateram e, antes que alguém fosse abrir, eles foram logo entrando. Contaram para Carla e Alice, que estavam na sala com Rodrigo, o que havia acontecido. Este nem esboçou alguma reação violenta ou tentativa de fuga. Um dos policias o algemou enquanto o outro foi para o carro.

James ouviu tudo da cozinha, descrente, perdido. Mesmo sendo um pouco lento de raciocínio podia perceber que aquilo não era bom e que levariam seu amigo para sempre. Levariam seu único amigo, aquele que o defendera no futebol e que lhe apresentou a Vitória.

O carro lá fora estava ligado, o policial que estava fora levava Rodrigo algemado pelo jardim. Passavam pelo toco de árvore quando James correu de dentro da casa e, com um cutelo, atacou o policial pelas costas. A multidão que se encontrava na rua ficou perplexa, o policial que estava no carro sacou sua arma. James correu em direção ao quintal pela lateral da casa onde pulou uma cerca e foi na direção norte da cidade. Um tiro passou zunindo pelo seu ouvido e o policial correu no seu encalço.

Enquanto James corria pensava em seu pai. Tinha a vívida imagem dele sentado no toco da árvore, fumando seu charuto. Chegou a ver seu pai lá sentado enquanto atacava o policial e pode até mesmo pressentir que ele o apoiava.

Chegou no riacho. A corredeira estava forte e o nível havia aumentado bastante. James foi entrando na água. Quanto mais se assustava mais fundo ia e os tiros do policial o assustavam muito. Foi indo em direção a parte mais funda, cada vez mais funda até a hora que a correnteza o levou.

***

Não se sabe se James foi atingido por uma bala ou se simplesmente se deixou levar pela correnteza. Seu corpo nunca foi achado.

Mesmo sem corpo toda a cidade, com exceção de Rodrigo, foi até o enterro. Dona Carla parecia inconsolável, assim como Alice. Foi rezada uma missa em que o padre levou muitos às lágrimas, inclusive a si próprio.

Alguns mais esperançosos, por mais que digam o contrário, acreditam que James conseguiu fugir e que a qualquer dia volta. A grande maioria pensa que ele morreu com um disparo. Mas de todas as teorias, a que Dona Carla mais gosta é daquela que dizem que ele nadou, nadou tanto que acabou tomando sua verdadeira forma de sapo e que agora passeia aos pulos pela cidade. Acredita que qualquer hora o verá sentado no toco da árvore ao lado de seu pai.

Um comentário:

Anônimo disse...

Demorei pra perceber que não ia faltar a morte habitual dos seus textos neste também.
Muito bom Ricardo. Voltou com tudo hein!