quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Funeral de João Carlos da Silva

Ainda saia fumaça da xícara de café. Ele alcançou no armário da cozinha a cesta de pães e sentou-se diante da mesa que não era farta, somente pão e café. Abriu o jornal que o porteiro acabara de trazer. O porteiro já era velho conhecido e foi atendido pelo morador com seu pijama listrado de inverno e suas pantufas de couro e de lã. Trocaram algumas palavras mas, pela cara de ambos, só iriam acordar depois das dez. Separou o caderno financeiro de um lado, não o interessava, estava apenas atras do caderno cultural e dos obituários.
Com uma caneta colorida circulou os possíveis programas que passariam na televisão aquele dia e que poderiam interessa-lo e anotou um horário de um filme que entraria em cartaz e que ele nunca chegaria a ver. Depois de feitas as preliminares partiu para o principal: o obituário.
Um homem de setenta anos pode Ter muitas coisas para fazer como hobby. Alguns de seus conhecidos se encontravam no calçadão da cidade para conversar e tomar algumas xícaras de café; uns gostavam de ler o jornal sentado ao banco da praça, devorando até a parte financeira. Ainda tinha um que freqüentava bailões. Ele não. Chegando ao final da vida, cansado e solitário resumia sua sociabilidade aos funerais. Era lá que era feliz. Não era muito chegado ao enterro, achava muito íntimo, e como nunca tinha intimidade com o morto reservava-se apenas as conversas do velório.
Naquele dia o obituário seria sua salvação. O caderno cultural não lhe trouxe muitas anotações, as que trouxe não valiam um níquel. Pensando positivo para Ter uma tarde agradável, abriu a página com esperança. Em um anúncio grande que parecia Ter cores no preto em branco, viu o nome do morto: João Carlos da Silva. Ficou um tempo parado. Um certo sorriso pareceu se formar em seu rosto. Não era desdém. Leu o resto do obituário com certa cautela e voltou para o de João, o morto do dia. Estava feita sua programação da tarde.

Uma imensa nuvem de vapor o seguiu quando ele saiu do banho demorado. Parecia haver saído de uma máquina que o banhara e vestira e o penteara com precisão. Apanhou as chaves de casa no balcão e rumou para a porta.
Fazia muito frio lá fora. Tinha sorte de sua máquina de vestir Ter lhe colocado seu sobretudo e luvas de couro. O trânsito era intenso e a dificuldade de conseguir um taxi foi grande.
- Para o cemitério das saudades, por favor.
Segui o resto da viagem calado, como era de costume. Chegando ao cemitério um novo sorriso lhe saltou no rosto: além do destaque no jornal, as coroas e a quantidade de rosas era imensa, o que lhe aumentou a consideração que ele tinha do morto.
Quando se tem setenta, ele sempre pensava, não há motivo para cerimônias na hora da conversa. Em dez minutos já se considerava chegado a família do morto bem como de seus amigos. Riu quando pensou que poderia Ter trocado a visita ao cemitério por um filme dublado de pré adolescentes a volta com seus animais de estimação na tv. E os canapés estavam uma delícia também
Por volta de cinco da tarde era hora do último adeus. Lágrimas escorriam do rosto das mulheres e os homens contorciam o rosto para não chorar. O caixão vazio precisava ser preenchido e todos voltaram para o senhor que chegar por último de táxi e que atendia pelo nome de João Carlos da Silva. Ele olhou para todos e o sorriso que sondava seu rosto durante todo o dia se converteu numa gargalhada gostosa que trouxe alguns sorrisos para o velório. Alguns de seus amigos o ajudaram a subir no caixão. Com dificuldade conseguiu deitar-se. Hesitou um pouco quanto como se portar dentro dele mas já era escolado em velórios e conseguiu dar um jeito. Seus seis filhos estavam em volta do caixão para carrega-lo. Fecharam o caixão e o escuro tomou conta de sua alma. Felizmente não precisaria ir ao enterro. Esse era só para os íntimos.