sábado, 14 de fevereiro de 2009

Lembranças de meu Irmão

Eu sempre fui meio ruim de memória. Leio livros e às vezes preciso voltar alguns capítulos para ver do que eles se tratavam para não perder algo importante. E coisas corriqueiras que me pedem para fazer eu sempre esqueço. No entanto lembro com grande clareza o dia da morte do meu irmão. Ele morava no Chile na época e nós não nos víamos a anos.
Não tinha dormido muito bem na noite anterior porque lembrei que estava com um CD de um programa bem legal de computador que um amigo tinha me emprestado a alguns meses e que eu tinha esquecido jogado no armário. Fiquei boa parte da noite querendo instalá-lo e perdi o sono. Logo que cheguei do colégio fui dar uma olhada. Estávamos todos no quarto conversando e eu no computador. Foi quando o telefone tocou e era uma mulher da embaixada do Chile.
Conversava com meu irmão com certa freqüência naquela época pelo telefone. Ele dizia que tinha um jeito de ligar que não cobrava a tarifa, então dava para ficar um bom tempo conversando sem gastar nada. Ele ligava tanto que as vezes incomodava e eu dava um jeito de desligar logo. Acho que ele me achava um tonto e até mesmo ficava sentido comigo. Mas os assuntos nunca davam uma conversa legal. Ele falava muito de futebol e, na época, eu não entendia nada disso. Lembro que um dia ele me perguntou de um gol de um tal jogador chileno que eu nunca tinha ouvido falar. Lembro que ele ficou louco porque o tal jogador era um dos eleitos a melhor do mundo!
Nossa relação foi sempre meio conturbada. Ele era bem mais velho que eu e muito das nossas vidas nós nem mormos juntos. Em uma temporada que ele passou lá em casa nos ficamos um bom tempo sem nos falar. Nem lembro porque. Mas teve os bons momentos também. Como os dias em que eu achava o vídeo game que minha mãe escondia para eu estudar e nós ficávamos horas jogando. Ou quando ele chegava de manhã de suas viagens ao Paraguai trazendo muamba. Eu e meu irmão do meio ficávamos horas vendo as coisas enquanto o mais velho tentava expulsar a gente para ele poder dormir. Lembro bem do cheiro do quarto dele, uma mistura de cigarros com umidade.
Por um tempo eu achava que não gostava tanto dele como deveria, ou pelo menos o tanto quanto o resto da família. No final daquela temporada ele ficou uns meses trabalhando na Argentina e quando voltou um dei um abraço tão grande nele que minha mãe disse que foi a melhor recepção que ele teve de todos nós. Aquilo foi um conforto para mim.
Fui eu quem atendi o telefone naquele dia. Quando a moça falou que era da Embaixada Chilena só pensava no que ele tinha feito de errado para ser preso. Acho que era algo bem justo e tranqüilizador de se pensar. Passei o telefone para minha mãe e ela ficou só ouvindo por um tempo. Suas primeira palavras foram: “E como nós fazemos com o corpo ?”. Era algo que eu, bem La dentro, sabia que ela iria falar. Meu irmão que estava deitado na cama dele escondeu o rosto no travesseiro para chorar. Eu fiquei ouvindo sem ouvir o que minha mãe dizia e, sabe-se lá porque, saí do quarto. Quando passei pela porta do meu quarto vi que nossa gata de estimação, aquela mesmo que ninguém gostava e que logo nós daríamos, estava no peitoral da janela, quase caindo. Tirei ela de lá e fui para a cozinha tomar água. Por algum motivo peguei um copo par minha mãe. Quando cheguei ao quarto ela já tinha desligado o telefone e estava consolando meu irmão, agora o único. Ela não chorava.
Eu quis demonstrar que eu era forte naquele dia, talvez fosse mesmo, e além de estudar para a prova de química do dia seguinte ainda fui para a aula de inglês. Mas fiquei absorto de tudo aquilo. Estava mais distante de tudo do que de costume. A noite, quando cheguei em casa, ficamos um bom tempo na sala, todos em silêncio. De vez em quando alguém falava algo mas parecia tudo tão surreal que nem virava uma conversa.
As causas de sua morte estão até hoje meio conturbadas para todos nós. A mulher da Embaixada havia dito que ele brincava com algumas crianças no teto de um ginásio e, quando o teto cedeu sob ele, ele caiu de uma altura de quinze metros. Ficou o fim de semana internado no hospital mas acabou morrendo. Aqueles detalhes me deixaram mais triste que a morte em si. Fiquei imaginando ele sofrendo sozinho em uma UTI, tão distante daqueles que o amavam, depois de ter ficado brincando com crianças que deveriam ser eu e meu outro irmão.
Durante a semana que se passou, antes que o corpo chegasse do Chile, nos todos seguimos uma rotina semelhante. Todos faziam o que faziam de costume e, quando chegava a noite no reuníamos na mesa da sala para sofrermos em silêncio. O corpo chegou em uma sexta feira. Passamos horas no setor de cargas do aeroporto esperando toda aquela papelada ser liberada para levarmos o corpo. Agora meu irmão não passava de uma carga.
O funeral foi triste e curto. Eu pude chorar bastante. Ia de dez em dez minutos chorar no banheiro, longe do olhar dos outros e voltava com a cara inchada e os olhos vermelhos. Depois veio o enterro, a tal da despedida final e tinha tudo acabado. Naquele mesmo dia alguns amigos me ligaram para andar de kart. Eu já não sofria tanto. É impressionante como após o enterro o sofrimento diminui e começa uma parte mais melancólica, as recordações e tudo mais. Não fui andar de Kart. Junto com o corpo a embaixada havia mandado uma caixa com alguns de seus pertences e estávamos todos ansiosos para abrir. Lembro que meu irmão, o único que me restava agora, tinha a esperança de que tudo aquilo tivesse sido um erro, que nosso irmão estava vivo e que voltávamos do enterro de outra pessoa. Quando abrimos a caixa, suas esperanças acabaram. Tinham algumas fotos que nós nunca tínhamos visto. Umas roupas e algumas fitas gravadas com músicas Chilenas. Um livro de inglês que eu guardo até hoje e alguns documentos. A vida de meu irmão se resumia no que estava naquela caixa. Era só o que restava, fora as lembranças.
No dia seguinte fomos a um restaurante. Servia comida mineira e tinha um bosque bem legal, com alguns animais e um lago. O dia estava extremamente ensolarado, um sol de inverno. Sempre pensei que aquele dia sim foi a dia da despedida de meu irmão. Um dia de céu claro, o primeiro que eu me dei conta de que ela não estava mais ali. De que nunca mais estaria.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Desmond e Molly

O encontro de Molly e Desmond ocorreu de forma inusitada e única na história dos povos, mas que o cinema mostra com tanta freqüência como se fosse algo corriqueiro. Desmond saiu de seu quiosque no mercado municipal quando esbarrou em Molly que vinha distraída com seu pacote de laranjas. Ambos se viraram e, mal olharam um para o outro estavam apaixonados.
O que chamou a atenção de Molly foi o jeitão de cigano de Desmond. Com um lenço sobre a cabeça e um chapéu sobre o lenço, pulseiras de couro, anéis de prata e alguns fiapos de barba no queixo, Desmond logo se prendeu ao cabelo longo e liso de Molly, com seus olhos cor de mel e, principalmente, seu violão que carregava nas costas.
Naquele mesmo dia, ou melhor, algumas horas depois, os dois almoçavam juntos no restaurante do mercado. Ela pediu peixe, ele frango. E não foi só nisso que os dois discordaram. Ao contrário do cinema, foi difícil deles encontrarem algo que tivessem em comum, seja nas preferências, fosse no conhecimento ou na classe social de cada um.
Molly era rica. Filha de um pai importador de bebidas e uma mãe que bebia muito das bebidas que o marido importava e além disso era advogada. Tocava em uma banda de rock anos sessenta, em bares da região. No demais do tempo gostava de escrever poesias e ler biografias de pessoas importantes. Sua preferida era do Ghandy.
Já Desmond era pobre. Acordava todos os dias às cinco e ia até a distribuidora de frutas carregar seu estoque para o dia e as oito horas da manhã já estava com o quiosque aberto. Não entendia muito de música. Seu pai gostava muito, samba de morro, mas não conseguiu passar o gene musical para o filho. A mãe Desmond perdeu cedo e dela herdou o gosto por aqueles trajes que usava.
Quase no fim do almoço, meia hora antes de Desmond ter de voltar para o trabalho acharam algo que unia os dois: o desejo enorme de ter filhos. Ainda eram bem jovens. Ele com vinte e cinco ela com vinte e dois. Foi uma descoberta que uniu os dois e que fez com que aquela paixão repentina de quando se encontraram pudesse um dia se tornar algo mais.
Naquela mesma noite Molly iria tocar em um bar. Era a noite dedicada aos Beatles que ocorria a cada dois meses e costumava atrair muita gente. Desmond hesitou diante do convite. Sua folga só era no domingo, portanto teria de acordar cedo no dia seguinte cedo. Mas a insistência foi tanta, não por parte de Molly mas dele mesmo, que acabou aceitando. Chegaria atrasado, no entanto. Não queria chegar cedo para adiar ao máximo o momento de conhecer os amigos dela e ter de tomar uma cerveja com eles. Desmond era tímido.
Ele chegou quando tocavam “Come Togheter”, a terceira música da noite. Sentou em um canto do bar , de onde dava para ver a banda e, depois de tomar uma Coca, foi ficar de pé junto do palco. Molly, que era também a vocalista da banda, percebeu quando ele chegou e deu um sorriso simpático que fez com que ela se perdesse um pouco. Nada que desse para Desmond perceber . Tocaram mais uma hora e o momento que Desmond aguardava com calafrios chegou. Foi conhecer o resto da banda e tomar a tal cerveja em uma mesa exclusiva para a banda.
Eles eram legais mas meio protetores demais para com Molly.
-Então, meu amigo, quais suas intenções para com Molly ?
Sem jeito, Desmond gaguejou algo que ninguém ouviu e deram risadas. Molly chamou a atenção de seu amigo que, segundo ela, estava sendo inconveniente. O resto da conversa foi uma coisa meio padrão de quando se esta conhecendo os outros e Desmond se saiu bem. Na hora de ir embora, o primeiro beijo dos dois. E não acabou por aí. Os pais de Molly viajavam e ela o convidou para ir com ela. Ele foi.

Um tempo depois e Molly estava grávida. Eles já namoravam a alguns meses. Molly, cheia da grana e um tanto irresponsável, estava radiante. Era a realização de um sonho. Desmond recebeu a notícia meio apreensivo. Sabia que não precisava muito se preocupar com dinheiro mas estava com medo pois não sabia se Molly deixaria que ele participasse daquilo. Ela riu.
- Você é o pai, vai participar da forma que todo pai participa.
Ele ficou lívido. Afinal era a realização de um sonho para ele também. Apesar de pouco tempo de namoro já haviam trocado os primeiros “eu te amo”. E parecia que eram de verdade mesmo. Passavam o tempo todo juntos, Molly ajudando nas vendas e ele sacrificando suas horas de sono para vela cantar e tocar. O que fazia muito bem por sinal.
Os pais de Molly ficaram furiosos, assustados, confusos, mas logo passou. Desmond era um cara decente, digno de confiança, e afinal, eles se amavam. Decidiram não se casar mas morarem juntos, na casa de Desmond. Era simples mas com a quantidade de dinheiro que os pais de Molly injetavam no casal, e que Desmond não tinha nenhum pudor em aceitar, as coisas estavam indo muito bem.
O bebê nasceu nove meses depois, como todos costumam fazer. Era uma menina e iria se chamar Jude. O avós corujas adoraram o nome, que poderia ser qualquer um. Estavam tão embriagados de felicidade, aceitavam tudo. Molly teve umas complicações no parto, nada muito sério mas que fez com que ela ficasse dois dias internada. Desmond tirou uns dias para ficar em casa, que acabaram viram um mês e meio, enquanto que o funcionário de confiança dele tomava conta da loja.
E que mês maravilhoso! O casal adorava aquela criança. A vida deles tinha ganho um novo significado, amadureceram e passaram a se amar ainda mais. Quando a pequena Jude tinha cinco anos eles ficaram em dúvida se a colocavam em uma aula de natação ou de violão, as duas seria demais para a criança. Ganhou o violão.
Tudo estava dando certo para o casal e iria continuar assim indefinidamente, afinal um casal que se conhece desta forma esta predestinado a ser feliz. Desmond continuou no seu quiosque no mercado municipal, por onde passeava com a pequena Jude enquanto Molly continuava a tocar com a banda.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Clichês da Morte

Quando meu gato morreu eu nem dei bola, o que foi um tanto estranho. Eu adorava aquele gato, de verdade. Era até comum eu dizer para mim mesmo que eu não saberia o que fazer quando ele morresse. Pois soube: peguei o numero da prefeitura na lista e em meia hora um senhor de bigode estava na porta de casa para pegar o corpo. Uma hora atrás era o Guizmo, um gato que eu amava e me acompanhou durante anos e agora era um “corpo”. Minha família também estranhou. Aliás foram eles que ficaram atônitos com a minha atitude e começaram a sugerir que eu tinha problemas.
Claro que não precisei ir ao psiquiatra e fazer tratamentos. E uma semana estava tudo quase esquecido não fosse o cheiro forte de urina de gato no tapete. Tudo voltou a mente na semana passada quando um pai de um amigo foi internado com câncer no hospital para nunca mais sair. Ficava o tempo todo imaginando que fosse meu pai que estivesse lá. Como eu agiria, como me comportaria na situação, será que eu iria me importar? Foi quando o telefone tocou e as coisas mudaram.
Já havia perdido um irmão, uma prima e um avô na infância, mas nenhum era “íntimo” então eu não sofri muito. Eu explico as aspas do íntimo. Com meu avô eu tinha certo contato mas ele era um pouco na dele, eu era muito, então não tínhamos muito diálogo. Além disso ele sofreu com câncer durante alguns anos então não fui pego de surpresa. Minha prima eu não via a anos pois ela não costumava ir na casa dos meus avós. Amanheceu certo dia com a corda do pijama amarrada no pescoço pela própria vontade. Com meu irmão é difícil explicar as aspas, afinal era irmão. Mas era irmão só por parte de mãe e dez anos mais velho. Não morou sempre comigo e quando morreu vivia no Chile e eu não o via a anos também. No funeral dele eu até chorei um pouco, mas porque estava me sentindo miserável com minha vida então aproveitei a morte dele para poder chorar abertamente na frente dos outros.
No telefone minha mãe me disse que tinha acontecido algo ruim (será que foi ruim a palavra?) com meu pai e eu tinha que correr para tal hospital. Lá ela me contaria tudo. Lembro que antes de desligar me disse: “você precisa ser forte”. E desligou engolindo o choro. O ônibus deve ter demorado cinco minutos a chegar. Não fosse a quantidade enorme de pessoas que ele trazia eu diria que o sistema de transporte de Curitiba era ótimo. Me peguei pensando nisso e a história do meu gato me veio a mente. Estava muito provavelmente indo ver o corpo que um dia teve nome e que eu chamava de pai, e não conseguia tirar da cabeça uma carta que nunca escreveria para a prefeitura da cidade reclamando dos ônibus. Pensei se havia algo de realmente errado comigo ou, pelo contrário, algo nobre como “não se apega ao material” ou “é mais forte do que todos, uma pessoa realmente espiritualizada”.
Quando cheguei ao quarto do hospital, estava o meu pai, na verdade seu corpo, deitado na cama. Um impulso me fez pensar em telefonar para a prefeitura para buscá-lo e eu me surpreendi com um sorriso de canto de rosto. Aquilo me assustou de verdade. Eu era um animal. Pior que alguns como o elefante que choram a morte de seus filhotes. Eu era pior que um elefante!
Chegou a vez de dar o abraço de despedida em meu pai. Ao contrário do dele meu coração batia rápido. Os escritores costumam dizer que as pessoas mortas tem um olhar para o vazio e sem brilho. Eu acredito neles e fiquei feliz que seus olhos estivessem fechados. De resto era como estivesse dormindo. Sentei em uma cadeira ao lado dele e comecei a chorar. Faria inveja a uma criança de dois meses que esta com fome. Minha mãe me abraçou e meu irmão abraçou a nós dois. O medo de ser um monstro passou. Ficou só o sofrimento. E os clichês de morte. O sorriso de canto da boca foi embora para só voltar depois de um bom tempo. Agora eu era um elefante!