quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Clichês da Morte

Quando meu gato morreu eu nem dei bola, o que foi um tanto estranho. Eu adorava aquele gato, de verdade. Era até comum eu dizer para mim mesmo que eu não saberia o que fazer quando ele morresse. Pois soube: peguei o numero da prefeitura na lista e em meia hora um senhor de bigode estava na porta de casa para pegar o corpo. Uma hora atrás era o Guizmo, um gato que eu amava e me acompanhou durante anos e agora era um “corpo”. Minha família também estranhou. Aliás foram eles que ficaram atônitos com a minha atitude e começaram a sugerir que eu tinha problemas.
Claro que não precisei ir ao psiquiatra e fazer tratamentos. E uma semana estava tudo quase esquecido não fosse o cheiro forte de urina de gato no tapete. Tudo voltou a mente na semana passada quando um pai de um amigo foi internado com câncer no hospital para nunca mais sair. Ficava o tempo todo imaginando que fosse meu pai que estivesse lá. Como eu agiria, como me comportaria na situação, será que eu iria me importar? Foi quando o telefone tocou e as coisas mudaram.
Já havia perdido um irmão, uma prima e um avô na infância, mas nenhum era “íntimo” então eu não sofri muito. Eu explico as aspas do íntimo. Com meu avô eu tinha certo contato mas ele era um pouco na dele, eu era muito, então não tínhamos muito diálogo. Além disso ele sofreu com câncer durante alguns anos então não fui pego de surpresa. Minha prima eu não via a anos pois ela não costumava ir na casa dos meus avós. Amanheceu certo dia com a corda do pijama amarrada no pescoço pela própria vontade. Com meu irmão é difícil explicar as aspas, afinal era irmão. Mas era irmão só por parte de mãe e dez anos mais velho. Não morou sempre comigo e quando morreu vivia no Chile e eu não o via a anos também. No funeral dele eu até chorei um pouco, mas porque estava me sentindo miserável com minha vida então aproveitei a morte dele para poder chorar abertamente na frente dos outros.
No telefone minha mãe me disse que tinha acontecido algo ruim (será que foi ruim a palavra?) com meu pai e eu tinha que correr para tal hospital. Lá ela me contaria tudo. Lembro que antes de desligar me disse: “você precisa ser forte”. E desligou engolindo o choro. O ônibus deve ter demorado cinco minutos a chegar. Não fosse a quantidade enorme de pessoas que ele trazia eu diria que o sistema de transporte de Curitiba era ótimo. Me peguei pensando nisso e a história do meu gato me veio a mente. Estava muito provavelmente indo ver o corpo que um dia teve nome e que eu chamava de pai, e não conseguia tirar da cabeça uma carta que nunca escreveria para a prefeitura da cidade reclamando dos ônibus. Pensei se havia algo de realmente errado comigo ou, pelo contrário, algo nobre como “não se apega ao material” ou “é mais forte do que todos, uma pessoa realmente espiritualizada”.
Quando cheguei ao quarto do hospital, estava o meu pai, na verdade seu corpo, deitado na cama. Um impulso me fez pensar em telefonar para a prefeitura para buscá-lo e eu me surpreendi com um sorriso de canto de rosto. Aquilo me assustou de verdade. Eu era um animal. Pior que alguns como o elefante que choram a morte de seus filhotes. Eu era pior que um elefante!
Chegou a vez de dar o abraço de despedida em meu pai. Ao contrário do dele meu coração batia rápido. Os escritores costumam dizer que as pessoas mortas tem um olhar para o vazio e sem brilho. Eu acredito neles e fiquei feliz que seus olhos estivessem fechados. De resto era como estivesse dormindo. Sentei em uma cadeira ao lado dele e comecei a chorar. Faria inveja a uma criança de dois meses que esta com fome. Minha mãe me abraçou e meu irmão abraçou a nós dois. O medo de ser um monstro passou. Ficou só o sofrimento. E os clichês de morte. O sorriso de canto da boca foi embora para só voltar depois de um bom tempo. Agora eu era um elefante!

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