terça-feira, 6 de outubro de 2009

19 Anos

So nobody ever told you baby

How it was gonna be…

Gun´s and Roses

Não, ninguém lhe havia dito. Agora ela se encontra em casa, sentada na mesa da cozinha, um caneco de café à sua frente, a solidão ao seu redor. Completou ontem seus vinte anos. Da adolescência que acaba ela guarda em si as cicatrizes de acne no rosto e a certeza de que essa foi uma etapa que passou e ela não aproveitou. Não teve namoros efêmeros, não foi a bares com amigos... Diabos, nunca nem os teve.

Se levanta e vai até a geladeira onde resta um pedaço de bolo da noite anterior. Muito marshmallow e frutas, muito creme e velas, mas poucos para comemorar, somente seus pais. Pouco também a ser comemorado.

Na cadeira a sua frente se encontra o tédio, dentro do peito a angústia. No telefone uma esperança remota, a espera de algo, não se sabe o que.

Levanta e se serve de mais um caneco de café, desta vez com leite. No ano passado as coisas foram diferentes. A Júlia estava na festa e um pouco de alegria se encontrava lá. Dali as duas foram para o bar e trocaram o primeiro beijo. Antes daquilo tinham sido só expectativas, sonhos.

As duas se conheceram pouco tempo antes. Júlia era secretária de seu pai, cinco anos mais velha e sabia tocar piano. Começou a ensinar piano para ela por insistência do pai que queria tirar sua filha da mesmice que se encontrava. E deu certo. Naqueles três meses de aula que antecederam seu aniversário de dezenove anos as coisas foram diferentes. Carla, que agora se lembra daquela época enquanto olha fixamente para a xícara de café, foi uma pessoa diferente naqueles breves três meses.

No começo tinha aversão ao piano. O piano lhe lembrava os encontros de família em que sua avó, agora falecida, tocava horas e horas suas músicas “clássicas” enquanto todos ficavam a sua volta fingindo admiração e tentando esconder os bocejos. Nesses encontros seus primos levavam seus pares. Carla nunca chegou a levar nenhum amigo, não os tinha.

Mas Júlia lhe mostrou que nem só de “músicas de vovó” vivia o piano e ensinou a tocar Easy do Faith No More. Era uma música fácil e até Carla que se considerava uma medíocre em tudo conseguiu tocar com precisão.

Nasceu aí um coleguismo que virou amizade. Terças e quintas depois de seu expediente no escritório, Júlia ia para casa de seu chefe e ensinava Carla durante dez minutos. Depois disso as duas se sentavam diante do piano enquanto conversavam e Júlia tocava algo. O pai de Carla bem sabia que ela não estava aprendendo nada, nem se esforçava, mas sabia que aqueles encontros faziam bem para filha. Desde que havia saído do segundo grau e decidido tirar umas férias antes de pensar em faculdade, Carla não acordava cedo, não se importava com nada exceto seu aparelho de som.

Uma coisa que Júlia teve muito êxito foi em ensinar uns tipos diferentes de música para Carla. Esta última deixou de ouvir tanto Radiohead e músicas tristes e passou para o pop, músicas indies e afins. Também conseguiu ensinar Carla, em apenas um dia, a tocar parabéns para você que no dia seguinte tocaria diante dos pais e de Júlia durante sua festa de seus dezenove anos.

Fazia uma semana que ela não dormia. Faltava pouco para seu aniversário e ela ainda tinha a intenção de seguir com seu plano: se declarar para Júlia e torná-la algo a mais que amiga. Ela tinha a impressão que seu pai pressentia seus planos e que de alguma forma apoiava. Sua mãe lhe olhava estranho, talvez coincidência. Mas tudo o que lhe importava era a reação de sua amiga. Passava noites em claro não pelo medo e sim pela expectativa, pelo desejo. Sim, um pouco de medo também. Nunca tinha feito aquilo, nem com um rapaz.

A noite da festa chegou, estavam todos os quatro empolgados, principalmente Carla. O bolo com marshmallow, creme frutas e velas estava sobre a mesa. Seria uma comemoração breve pois as moças tinham que sair. Estava bem vestida, perfumada, maquiada. Todos estranharam aquela preparação toda, mas afinal, não sabia se vestir para ir a um bar. Este estava lotado. Ficaram na fila por um tempo, que por sorte passou logo e, ao atravessar a porta, Carla era alguém diferente. Dançou, bebeu pouco mas bebeu, flertou com rapazes de forma inocente sobre os olhares orgulhosos de Júlia.

Até que a beijou. A princípio Júlia retribuiu, as duas ficaram naquele momento de cumplicidade por um bom tempo. Olharam nos olhos uma da outra. Carla em puro êxtase, Júlia em assombro. Esta última não conseguia atinar nada, esquivou a tentativa de um segundo beijo e se foi.

Carla se quedou sozinha na pista do bar. Esperava por algo como aquilo, mas não esperava que Júlia não voltasse a dar mais aulas e confabular por horas durante a noite.

Seu pai parecia saber de tudo e a tentou consolar. Sua mão engoliu o orgulho e fez o mesmo. Uma semana depois e a sua rotina tinha voltado a ser a mesma de antes: acordar tarde; não fazer nada; dormir cedo.

Não, ninguém lhe havia dito como seria. Ela aprendeu da maneira mais difícil. Os dedos de Júlia nas teclas brancas e pretas ainda povoam sua mente. Enquanto olha para a xícara e pensa, da um pequeno sorriso. Foi um bom aniversário no final das contas.

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