quarta-feira, 18 de março de 2009

Aulas de Ginástica

Era um dia chuvoso, não o ideal para usar roupas novas, mas ele iria encontra-la. Ela não sabia disso. Atravessou a praça do Japão, evitando as poças que estragariam seu sapato novo de camurça. Sua camisa de setim preta estava molhada na manga esquerda onde o guarda chuva estragado não conseguia proteger.
O ônibus demorou um pouco, não mais que o habitual e veio cheio, como sempre. Encostado em uma das sanfonas começou a pensar nela. Seu nome era Mariana e eles se conheceram ainda no colégio. Estudavam em salas diferentes mas a ginástica era no mesmo horário. Como ambos tinham uma certa aversão (terror ?) a qualquer atividade física, conseguiam, com certa dificuldade, diverso atestados dizendo das impossibilidades de praticarem esporte naquele dia. Justamente no dia da ginástica. Ficavam sentados no canto da quadra, assistindo os outros jogarem algum esporte. Eventualmente Marcos levava seu discman e um dia ela pediu para ouvir junto. Foi assim que se falaram pela primeira vez.
Ela também gostava de Pink Floyd, que era o que eles ouviram aquele dia e desde então ele começou a trazer diversos CD´s da banda para agradar. E agradou. A antes tão odiada aula de ginástica passou a ser aguardada com euforia pelos dois. Claro que poderiam conversar nos intervalos mas de certa forma estragaria o momento mágico daquelas duas horas que passavam sozinhos.
O professor de educação física, que não era nenhum idiota, percebeu logo de começo que aqueles atestados não eram verdadeiros e deixou até mesmo de exigi-los. Pensava em obrigá-los a fazer os exercício como todos os outros mas a diretora pediu que ele não o fizesse. Aqueles dois eram amigos agora e ela sabia o quanto aquilo era importante para eles, afinal, eram os dois "solitários" do colégio. Tinham colegas, não amigos, e juntavam-se ao bando única e exclusivamente para parecerem normais.
E assim, sem se preocuparem com as aulas e com o aval de diretora para conversarem durante as duas horas de aula, deu-se início uma grande amizade. No começo a canversa tinha um teor de ódio, amargura talvez. Falavam do quando aquilo era ridículo, aquele colégio e tudo mais. De como se sentiam acuados pelos colegas, e professores, e matérias, e trabalhos. Com o tempo passaram a se focar no que gostavam e o clima amenisou. Falavam de bandas, traziam sempre um CD de uma banda diferente para mostrar para o outro.
Aquela amizade começou a mudar a visão deles de colégio, da vida, das pessoas. Cada um começou a tornar um colega preferido em amigo e aos poucos passavam a, de fato, pertencer ao grupo. A diretora ficou orgulhosa.
O ano acabou e no ano seguinte, segundo ano do ensino médio, eles conseguiram se matricular na mesma sala. As coisa deslancharam de aí em diante. Era como uma flor desabrochando. De intrusos, passaram a ser líderes dos grupinhos, ouso até dizer "populares". Como as coisas estavam melhores para ele, o professor de ginástica passou a exigir a participação dos dois nas aulas. Eles nem se importavam. Tinham tempo de sobra juntos, durante as aulas e até mesmo depois.
Foi um pouco antes das férias de julho que o pai de mariana foi transferido. É de se imaginar o choro dela e o sofrimento calado dele. Ela pensou em ficar mas sua mãe, um tanto possessiva nem quis ouvir a respeito. Os dois estavam miseráveis. No dia da partida ele foi até o aeroporto. Tinha ido até lá algumas vezes mas nunca com os olhos marejados. Desta vez não seria um passeio agradável. Uma multidão de gente havia ido se despedir da família. Marcos até levou uns amigos próximos dos dois com ele.
Foi só um pouco antes do embarque que os dois trocaram o primeiro beijo. Ela levou ele até um canto, lhe entregou uma carta e o beijo veio naturalmente, com um atraso de quase um ano. Ambos choravam e as lágrimas, ligeiramente salgada, deram um toque especial à despedida.
Por um tempo ainda se conversavam por email. Telefone raramente. Ambos cairam na antiga clausura, odiando as aulas, as amizades. Mas durou pouco. Nenhum deles queria voltar ao que foram um dia.
No sexto mês separados já não conversavam tanto. Cada um tinha feito novas amizades e estavam tocando a vida de algum jeito. Ela começou a namorar um cara, o que causou um desespero em Marcos que durou semanas e, a partir de então, praticamente pararam de se falar.
Neste dia chuvoso de hoje Marcos ia ao aeroporto mais uma vez. Dois dias antes haviam ligado para sua casa, era o pai de Mariana. Sua voz estava rouca, choro engasgado, e ele falou, de forma bastante cerimoniosa, da desgraça que se abatera em sua vida. Mariana havia morrido de meningite, dessas bem graves. Não houve tempo para despedidas. O corpo chegaria no aeroporto em dois dias e seria enterrado em Curitiba, onde morava o resto da família e para onde eles voltariam na semana que vem, devido a uma nova transferência.
Foi um choque terrível e Marcos colocou todo seu sofrimento em forma de rancor contra Mariana. Porque ela não havia falado da transferência ? Porque não ficou quando seus pais mudaram ? Talvez se tivesse sido mais forte as coisas seriam diferentes e eles teriam ficado juntos.
O pai de Mariana fazia questão da presença de Marcos no aeroporto e ele, mesmo sem carona pegou um ônibus em um dia chuvoso para ir até lá. Chegando ao aeroporto o Seu João lhe entregou um embrulho fechado onde haviam dúzias de escritos de Mariana para Marcos. Aquela foi a gota d´agua. Ele sentou no chão para não cair. João se abaixou e abraçou o rapaz e os dois choraram juntos. Foi um choro sofrido, que durou um bom tempo. Depois se recomporam e se sentiram estranhamente mais calmos.
Desta vez ele não pode fazer nada mas sabia que um dia a havia salvo, assim como ela um dia o salvou. O velório, o enterro foi sofrido e no final Marcos voltou, debaixo de um dia nebuloso mas sem chuva, para os escritos de sua grande amiga.

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